Historicamente o Direito Civil sempre foi um dos ramos do direito que caminha a passos lentos em termos de mudanças legislativas. Enquanto o direito tributário muda diariamente por meio das mais diversas portarias, o direito penal muda em razão de um verdadeiro fetiche em tipificar condutas, o processo muda para atingir a utópica celeridade, a Constituição sofre emendas no mesmo ritmo que se remendam roupas velhas, o direito civil sempre mudou após longos períodos de reflexão e de experiência sedimentada.
Atualmente, a cada mês surge uma pequena ou grande mudança legislativa em termos de direito civil. É a Lei de Introdução ao Código Civil que muda de nome (sem mudar o conteúdo), a idade da pessoa que se casa pelo regime da separação obrigatória passa que para 70 anos e, agora, surge uma nova modalidade de usucapião: a usucapião familiar. São os tempos pós-modernos, em que a celeridade permeia as relações humanas e também a vontade do legislador em “aprimorar” o sistema.
Não foi sem grande surpresa que recebi por e-mail a novidade que ora comento: uma nova modalidade de usucapião que denominei usucapião familiar. A lei 12.424/11 alterou o Código Civil criando um dispositivo, o artigo 1240-A, com a seguinte redação:
“Aquele que exercer, por 2 (dois) anos ininterruptamente e sem oposição, posse direta, com exclusividade, sobre imóvel urbano de até 250m² (duzentos e cinquenta metros quadrados) cuja propriedade divida com ex-cônjuge ou ex-companheiro que abandonou o lar, utilizando-o para sua moradia ou de sua família, adquirir-lhe-á o domínio integral, desde que não seja proprietário de outro imóvel urbano ou rural.
- 1oO direito previsto no caput não será reconhecido ao mesmo possuidor mais de uma vez.”
Creio ser adequada a denominação usucapião familiar em razão de sua origem, qual seja, o imóvel pertence aos cônjuges ou companheiros, mas só é utilizado por um deles após o fim do casamento ou da união estável. Algumas reflexões se fazem necessárias.
I – As reflexões.
A primeira é que o instituto tem origem no direito à moradia consagrado no art. 6º da Constituição Federal. Trata-se de norma que protege pessoas, normalmente de baixa renda, que não têm imóvel próprio, seja urbano ou rural. A redação do dispositivo exige praticamente os mesmos requisitos previstos no art. 183 da Constituição para fins da chamada usucapião urbana ou pro moradia. É de se notar, contudo, que prazo é mais exíguo que aqueles de qualquer outra modalidade de usucapião: apenas 2 anos.
Também em razão do caráter constitucional do instituto, prevê o par. primeiro do art. 1240-A que este direito não será reconhecido ao mesmo possuidor, mais de uma vez. Imagino a seguinte situação concreta. Determinada mulher casada permanece no imóvel comum, residência da família, enquanto seu marido vai voluntariamente embora de casa e constitui nova família em cidade distante. Passados dois anos do abandono, a esposa reúne os requisitos para a usucapião familiar. Sendo proprietária do bem em razão de sentença que declara a usucapião, a esposa vende o bem. Iniciando agora uma união estável surge a mesma situação. O companheiro abandona o imóvel e a companheira dois anos depois promove a ação de usucapião. De acordo com o dispositivo, como esta mulher já usucapiu imóvel se utilizando da usucapião familiar, só poderá usucapir o bem por outra modalidade, seja ela prevista no Código Civil (usucapião extraordinária do art. 1.238) ou pela Constituição (art. 183).
A segunda reflexão diz respeito ao tipo de imóvel. Apenas o imóvel urbano pode ser objeto da usucapião familiar. É a moradia e não o trabalho que se privilegia. Por isto o artigo 1.240-A surge em sede de regulamentação do programa do Governo Federal “Minha casa, Minha vida”. Assim, não há regra análoga ao art. 191 da Constituição com relação à usucapião de imóvel rural, qual seja, a usucapião pro labore. Não se trata de dar terra a quem não tem.
Ainda, o imóvel deve ser de propriedade do casal que surge com o casamento ou com a união estável, seja ela hétero ou homossexual.
O imóvel pode pertencer ao casal em condomínio ou comunhão. Se o casal for casado pelo regime da separação total de bens e ambos adquiriram o bem, não há comunhão, mas sim condomínio e o bem poderá ser usucapido. Também, se o marido ou a mulher, companheiro ou companheira, cujo regime seja o da comunhão parcial de bens compra um imóvel após o casamento ou início da união, este bem será comum (comunhão do aquesto) e poderá ser usucapido por um deles. Ainda, se casados pelo regime da comunhão universal de bens, os bens anteriores e posteriores ao casamento, adquiridos a qualquer título, são considerados comuns e portanto, podem ser usucapidos nesta nova modalidade. Em suma: havendo comunhão ou simples condomínio entre cônjuges e companheiros a usucapião familiar pode ocorrer.
A posse comum não enseja a aplicação do dispositivo. Não se admite usucapião de imóvel que não seja de propriedade dos cônjuges ou companheiros. Assim, se um casal invadiu um bem imóvel urbano de até 250 m2, reunidos todos os requisitos para a aquisição da propriedade (seja por usucapião extraordinária, seja por usucapião constitucional), ainda que haja abandono por um deles do imóvel, por mais de 2 anos, o direito à usucapião será de ambos e não de apenas daquele que ficou com a posse direta do bem.
A terceira reflexão diz respeito ao termo ex-cônjuge ou ex-companheiro. A partícula “ex” significa que a união estável ou o casamento acabaram de fato ou de direito. A extinção de direito significa que houve sentença ou escritura pública reconhecendo o fim da união estável (ação declaratória de extinção da união estável), ou sentença ou escritura pública de divórcio ou separação de direito, bem como liminar em medida cautelar de separação de corpos. A extinção de fato significa fim da comunhão de vidas entre cônjuges e companheiros que não se valeram de meios judiciais ou extrajudiciais para reconhecer que a conjugalidade. É a simples saída do lar conjugal.
A separação de fato, portanto, permite o início da contagem do prazo da usucapião familiar, desde que caracterizado o abandono. A separação de fato tem sido admitida como motivo para que se reconheça o fim da sociedade conjugal e do regime de bens. Neste sentido decidiu o STJ que:
“1. O cônjuge que se encontra separado de fato não faz jus ao recebimento de quaisquer bens havidos pelo outro por herança transmitida após decisão liminar de separação de corpos. 2. Na data em que se concede a separação de corpos, desfazem-se os deveres conjugais, bem como o regime matrimonial de bens; e a essa data retroagem os efeitos da sentença de separação judicial ou divórcio. (REsp 1065209/SP, Rel. Ministro JOÃO OTÁVIO DE NORONHA, QUARTA TURMA, julgado em 08/06/2010, DJe 16/06/2010)”
Diante desta correta orientação, não há motivos para que a separação de fato não seja motivo para início do prazo desta nova modalidade de usucapião.
A quarta reflexão diz respeito ao verbo “abandonar”. Note-se que como toda a modalidade de usucapião, a usucapião familiar exige que o proprietário deixe de praticar atos que lhe são inerentes, sejam estes atos de uso, de gozo ou de reivindicação. Abandono deve ser compreendido como efetivo não exercício de atos possessórios. Se o cônjuge ou companheiro que não residir no imóvel tomar qualquer medida judicial ou extrajudicial visando à manutenção da propriedade não se configura o abandono. Exemplo clássico é o do cônjuge que propõe ação para arbitramento de aluguel pelo uso exclusivo da coisa comum ou que propõe ação de partilha do bem comum.
Evidentemente que se a mulher se valeu das medidas previstas no art. 22 da Lei Maria da Penha (Lei 11.340/06) para sua proteção, quais sejam, afastamento do marido ou companheiro do lar, domicílio ou local de convivência com a ofendida; proibição de determinadas condutas, entre as quais: a) aproximação da ofendida, de seus familiares e das testemunhas, fixando o limite mínimo de distância entre estes e o agressor; b) contato com a ofendida, seus familiares e testemunhas por qualquer meio de comunicação; c) freqüentação de determinados lugares a fim de preservar a integridade física e psicológica da ofendida; não há que se falar em abandono por parte do marido ou companheiro e, portanto, não há possibilidade de usucapião familiar. Se usucapião houver, será por outra modalidade qualquer, mas não a do art. 1.240-A do Código Civil.
O parágrafo 3º do dispositivo em questão é cristalino: para garantir a efetividade das medidas protetivas de urgência, poderá o juiz requisitar, a qualquer momento, auxílio da força policial. Evidente está que se houve recusa do marido ou companheiro em sair do imóvel, a ponto de se requisitar força policial, abandono não houve para que se aplique esta nova modalidade de usucapião.
Da mesma forma, ocorrendo o disposto no art. 23 da Lei 11.340/06 não se pode dizer que houve abandono de lar, já que o juiz pode determinar a recondução da ofendida e a de seus dependentes ao respectivo domicílio, após afastamento do agressor; determinar o afastamento da ofendida do lar, sem prejuízo dos direitos relativos a bens, guarda dos filhos e alimentos; ou ainda, determinar a separação de corpos. Em todas estas situações não
Por fim, um último esclarecimento é importante. O § 2º do art. 1.240-A foi vetado pela Presidente da República. O dispositivo tinha a seguinte redação: “§ 2º No registro do título do direito previsto no caput, sendo o autor da ação judicialmente considerado hipossuficiente, sobre os emolumentos do registrador não incidirão e nem serão acrescidos a quaisquer títulos taxas, custas e contribuições para o Estado ou Distrito Federal, carteira de previdência, fundo de custeio de atos gratuitos, fundos especiais do Tribunal de Justiça, bem como de associação de classe, criados ou que venham a ser criados sob qualquer título ou denominação.” A razão do veto foi a seguinte: “Os dispositivos violam o pacto federativo ao interferirem na competência tributária dos Estados, extrapolando o disposto no § 2º do art. 236 da Constituição”
II – Os problemas
Lendo as excelentes reflexões do Prof. Marcos Ehrhardt Junior (que recebi por meio do twitter @marcosehrhardt) cabem efetivamente algumas questões sobre os problemas do dispositivo e da própria usucapião.
Primeiro, bem lembra o Prof. Ehrhardt que “parece não haver nenhuma preocupação quanto à simplificação dos procedimentos processuais para reconhecimento da usucapião. Todas as iniciativas recentes voltadas ao tema visam apenas à criação de novas formas para exercício de tais direitos, criando uma miríade de requisitos distintos que apenas dificulta a aplicação e conhecimento do instituto”. Efetivamente, todos os problemas procedimentais da usucapião passam longe da preocupação legislativa. O excesso de burocracia e de custos inerentes à usucapião acaba afastando as partes de se valer desta forma de regularização fundiária.
Uma segunda questão diz respeito aos prazos. Isto porque o art. 1240 do CC (que reproduz o artigo 183 da Constituição) exige um prazo de 5 anos para usucapião e a usucapião familiar fala apenas em 2 anos. Pergunta o Prof. Ehrhardt: “O separado de fato terá mais vantagens do que aquele que ainda vive com sua família?”. A resposta é a seguinte: para a usucapião em face de terceiros prossegue o prazo de 5 anos, já para a usucapião entre cônjuges prevalece o prazo de 2 anos.
Assim, se João casado com Maria adquirem o imóvel de José e deixam de pagar as prestações. José nada faz. Após 5 anos, seno o imóvel urbano de no máximo 250m2, e o único da família, haverá a possibilidade da usucapião pelos cônjuges em face de José. Por outro lado, para João ou Maria usucapir a metade do bem que pertence ao outro cônjuge, é necessário apenas período de 2 anos após a separação de fato ou de direito do casal.
A lei presume, no meu sentir de maneira equivocada, que quando o imóvel é familiar deve o prejudicado pela posse exclusiva do outro cônjuge ou companheiro tomar medidas mais rápidas, esquecendo-se que o fim da conjugalidade envolve questões emocionais e afetivas que impedem, muitas vezes, rápida tomada de decisão. É o luto pelo fim do relacionamento.
Outra questão interessante pensada pelo Prof. Ehrhardt é a seguinte: “se ambos ingressarem com a demanda? Basta que o imóvel sirva de residência para a família, não necessariamente para o autor da ação. O texto da lei parece não permitir que a propriedade seja conferida a ambos”. Aqui ouso discordar. Nestas modalidades de usucapião a posse que se exige é personalíssima. Seu espírito é dar casa a quem não tem. Assim, que não utiliza o imóvel como residência não poderá se valer da usucapião familiar.
O próprio Prof. Ehrhardt em artigo sobre o tema prossegue com a seguinte observação. “Após minhas primeiras impressões sobre o art. 1.240-A e de algumas conversas com colegas professores, veio do amigo Lucas Abreu Barroso a mais lúcida ponderação sobre uma interpretação mais adequada para o novel instituto. Para evitar parte das dificuldades apontadas no post anterior, a solução poderia ser a seguinte: O art. 1.240-A apenas poderia ser utilizado entre cônjuges ou companheiros por ocasião do fim do relacionamento, não sendo possível sua utilização ante terceiros.“
Este me parece ser o correto alcance do dispositivo. Trata-se de usucapião exclusivamente a ser utilizado entre cônjuge ou companheiro contra seu antigo consorte que abandonou o lar e não se opôs pelo período de 2 anos a posse mansa e pacífica do outro consorte.
A utilidade do novo instituto é clara. Havendo abandono do lar, a usucapião pode ocorrer após o lapso de 2 anos. As dificuldades são evidentes. O prazo é exíguo demais para a elaboração do luto elo fim da conjugalidade. Por que um prazo inferior àqueles das demais modalidades constitucionais de usucapião?
Ademais, se o imóvel foi adquirido pelo casal, como resultado do esforço comum, seja ele material ou espiritual, qual o motivo para permitir a usucapião? No meu sentir, há uma punição patrimonial ao cônjuge ou companheiro que “abandona” a família.
Seria justa esta usucapião se o cônjuge ou companheiro abandona o imóvel e não a família? Um bom argumento ao cônjuge ou companheiro que não mais utiliza o bem é que se não abandonou a família, apenas tolerou a presença do outro no imóvel (mormente se o que permaneceu tiver a guarda dos filhos), e os atos de mera tolerância não significam posse o que impediria a verificação desta usucapião familiar.
Sinceramente, creio que teremos mais problemas que solução. Esta modalidade de usucapião significará acirramento de lutas patrimoniais no seio da família (mesmo acabada a família conjugal, prossegue a parental) comprometendo a manutenção de bons vínculos parentais, no mais das vezes. Estas reflexões iniciais servirão certamente de provocação para o aprofundamento do debate.