Afeto: de valor jurídico à perversão. Eu errei. E muito. Parte II

A primeira delas é a multiparentalidade para fins de usucapião de filho alheio. Sim, uma pessoa com dois pais e uma mãe, ou duas mães e um pai ou diversas mães e/ou diversos pais. Qual o objetivo da multiparentalidade?

Como Villela classifica a multiparentalidade: “Querem alguns que surge daí, então, uma extravagante possibilidade: diversos pais-varões para uma só pessoa”. [1] Ele afirma peremptoriamente, com base na doutrina estrangeira, que:

“Não se trata aqui de provar a paternidade do réu; trata-se simplesmente de exercitar sua responsabilidade. Mantendo relações com a mãe no momento da concepção, ele assumiu o risco de ser o pai. Daí resulta então um certo caráter indenizatório da ação para fins de subsídios. É por isso que o artigo 342-3 utiliza o termo indenização. Já se criticou essa medida, que, entretanto, se justifica pelo fato de que, na ausência de presunção de paternidade, como na filiação legítima, e na ausência de prova da paternidade, sendo a hipótese a de que vários homens tiveram relações com a mãe no período da concepção, é muito difícil saber quem é verdadeiramente o pai. Convém, pois, vir, por outro caminho, em socorro do filho.” [2]

A crítica de Villela é contundente. Não se trata da “extravagante possibilidade: diversos pais-varões para uma pessoa”. [3]

O que fez a jurisprudência, de início, com muita cautela? Admitiu duas mães para uma pessoa na situação em que a mãe biológica (ascendente de primeiro grau) havia morrido e a criança fora criada pela madrasta (ascendente de primeiro grau por afinidade). Após vários anos, a pessoa pede que seja a madrasta considerada mãe, ao lado da biológica falecida, ou seja, a pessoa passa a ter duas mães e um pai. [4]

É esse o teor do acórdão:

“MATERNIDADE SOCIOAFETIVA. Preservação da maternidade biológica – Respeito à memória da mãe biológica, falecida em decorrência do parto, e de sua família – Enteado criado como filho desde dois anos de idade – Filiação socioafetiva que tem amparo no art. 1.593 do Código Civil e decorre da posse do estado de filho, fruto de longa e estável convivência, aliado ao afeto e considerações mútuos, e sua manifestação pública, de forma a não deixar dúvida, a quem não conhece, de que se trata de parentes – A formação da família moderna não consanguínea tem sua base na afetividade e nos princípios da dignidade da pessoa humana e da solidariedade – Recurso provido.”

Essa decisão chocaria Villela? Claro que não, porque o autor afirma que o objetivo da construção afetiva é: “dentro dele o país sofre com seus milhões de crianças em abandono de diferentes graus e espécies, a consciência de que a paternidade é opção e exercício, e não mercê ou fatalidade, pode levar a uma feliz aproximação entre os que têm e precisam dar e os que não têm e carecem receber”. “Explico-me. Por que não acolher, adotar, tomar em legitimação adotiva, ou em outras formas possíveis e imagináveis de ajuda, tantas crianças carentes, ao invés de manter represado o impulso da paternidade ou pôr mais vidas num mundo superpovoado e competitivo?” [5]

Contudo, posteriormente, a doutrina (e eu não me incluo) passou a admitir que qualquer homem que contribuiu com material genético (preterido da função paterna por motivos alheios à sua vontade, como o fato de a mulher não ter contado sobre a gravidez) se tornasse pai da criança. É o caso de uma mulher que, grávida de João, se casa ou se une com José, que registra a criança em nome próprio e constrói o vínculo afetivo.

João pede e prova a “paternidade” biológica e, com a benção da doutrina, a criança ganha um novo pai. Em que momento se analisa o melhor interesse da criança? Em nenhum. Prevalece a fórmula do senso comum pela qual quanto mais, melhor. Melhor ter três “ascendentes” do que apenas dois.

O resultado prático dessa mal pensada multiparentalidade? Duas mulheres são casadas. Apenas uma delas é mãe biológica da criança. O pai biológico está presente e mantém intenso convívio da criança. A esposa da mãe, movida por ciúme (ou quer outra razão que a razão desconhece), resolve ser mãe socioafetiva da criança. Quem sabe seria uma forma de “roubar” os afetos do pai para que ela (esposa da mãe) passasse a exercer a função paterna?

Outro caso. O segundo marido da mãe da criança detesta o primeiro. Coisas da vida. Há um ciúme e competição. O que ocorre? O padrasto resolve pedir judicialmente o reconhecimento da paternidade socioafetiva para ser pai também. Qual argumento do autor? “Na prática, a criança tem dois pais.” Ela tem? Em regra, não. Há um bom padrasto que não é pai. Há uma boa madrasta que não é mãe. O fato de haver preocupação e zelo por parte do ascendente de primeiro grau por afinidade não gera multiparentalidade.

A falta de base teórica sólida na construção da multiparentalidade e o abuso no uso dos princípios constitucionais (em especial a vazia invocação de uma dignidade da pessoa humana sem nenhuma concretude) gera essas distorções: “dois pais é melhor que um, não é?”. “A criança terá mais direitos, não é?”

Essa doutrina dos palpites rasos e de asserções baseadas em um senso “comum” tem feito mais mal ao direito de família, em paráfrase a Napoleão Bonaparte, que toda a massa de leis que a precederam.

E por quê? O parentesco é via de mão dupla. Um filho com dois pais e uma mãe, ou duas mães e um pai, teria mais direitos e mais deveres. Poderia pedir alimentos aos três, mas será, no momento próprio, devedor de alimentos para três. O exercício do poder familiar por duas pessoas, nos momentos de discordância e litígio, é suficientemente complexo. Já é traumatizante para o menor em se tratando de decisão a ser tomada por apenas duas pessoas (um pai e uma mãe, duas mães ou dois pais).

Com a inserção de um outro pai, uma outra mãe ou outros pais ou outras mães (o afeto tem essa “magia”: a criança ou adolescente pode ter infinitos pais e mães, o número que a imaginação comportar) o litígio ganha mais partes.

O litígio ganha contornos de decisão assemblear. A escola em que o filho estudará ser decidida por maioria ou unanimidade? Se houver empate, o critério de desempate será pelo pai ou mãe que for mais velho? [6]

Essa gestão assemblear da vida da criança e do adolescente beira o absurdo. Imaginemos que a mãe biológica e o pai biológico sejam veganos, budistas, a favor do ensino construtivista, fãs de esportes e aventuras radicais, a favor de dar ao menor ampla liberdade de escolha, sem nenhuma regra ou obrigação de estudar e somente aceitem a homeopatia como tratamento. Já a mãe “socioafetiva” (esposa da mãe biológica) coma carne, é católica fervorosa, a favor do ensino tradicional, adora leitura e detesta atividades físicas, é rígida na educação e nas regras e totalmente a favor da alopatia. Os pais biológicos decidem por maior? Não. Vamos ao Judiciário analisar o melhor interesse da criança, é claro.

Essa inflação do afeto é a perversão. E isso gera dois efeitos: (i) uma enorme vontade de transformar qualquer cuidado em afeto por partes de alguns para se usucapir filho alheio ou (ii) o medo de cuidar de filho alheio para se evitar a construção do vínculo afetivo e seus efeitos jurídicos.

É hora de olhar o afeto e a multiparentalidade de maneira menos ingênua, menos romântica e mais efetiva. O movimento de multiplicação sem freios de ações em que se pretende a multiparentalidade é a prova de que errei muito. Atualmente há ações de ex-namorados ou ex-namoradas pedindo vinculo afetivo com os filhos de seu antigo namorado. É a barbárie jurídica e social por força de uma banalização ímpar do instituto. E por quê?

Porque o uso de uma suposta paternidade ou maternidade para fins de manutenção de relação (agora de “parentalidade”) com o antigo namorado ou namorada ou mesmo antigo cônjuge ou companheiro é uma completa perversão e menoscabo da dignidade da pessoa humana.

Sim, se o fundamento da multiparentalidade é constitucional, a perversão também deve ser combatida com o mesmo fundamento: o melhor interesse da criança e do adolescente e a tão famosa e mal utilizada dignidade da pessoa humana. Kant dizia que o ser humano vale, é fim em si mesmo e, portanto, não tem preço. Há dignidade em se tornar pai ou mãe de filho alheio por puro capricho?

Há um outro fator: o tempo. Relações pessoais efêmeras, como os namoros, e as mais ou menos efêmeras, como o casamento, podem gerar, ipso facto, uma relação absolutamente perene como a parentalidade? Muito, mas muito raramente e com muito cuidado por parte do julgador. A banalização atual é perigosa.

O excesso de parentalidade socioafetiva egoística gerará, no futuro, abandono afetivo. É esse o futuro (trágico) que estamos construindo.

A segunda perversão do afeto é a possibilidade de escolha que se dá ao filho: quero meu pai biológico, quero meu pai socioafetivo ou quero os dois? São as chamadas ações argentárias, mas isso trabalharemos em momento oportuno e não agora.

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[1] VILLELA. op. cit., p. 403.

[2] Ibidem, p.404.

[3] Ibidem, p.403

[4] Em agosto de 2012 a 1ª Câmara de Direito Privado do Tribunal de Justiça do Estado de São Paulo (Desembargador Alcides Leopoldo e Silva Junior) inovou ao julgar procedente a apelação cível 0006422-26.2011.8.26.0286, interposta em ação declaratória de maternidade socioafetiva, declarando a maternidade socioafetiva concomitantemente com a maternidade biológica.

[5] VILLELA. op. cit., p. 403.

[6] Já há essa regra na lei do inquilinato: “Art. 30. Estando o imóvel sublocado em sua totalidade, caberá a preferência ao sublocatário e, em seguida, ao locatário. Se forem vários os sublocatários, a preferência caberá a todos, em comum, ou a qualquer deles, se um só for o interessado. Parágrafo único. Havendo pluralidade de pretendentes, caberá a preferência ao locatário mais antigo, e, se da mesma data, ao mais idoso”.

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