Poligamia, casamento homoafetivo, escritura pública e dano social: uma reflexão necessária ? Parte 2

Conforme nossas reflexões na última edição da Carta Forense, a análise da escritura pública poligâmica lavrada em Tupã merece um questionamento sobre o modelo de família admitido pelo direito brasileiro.

Assim indaga-se: é da tradição ou cultura brasileiras a poligamia?

a) a tradição européia.

Interessante notar que, se buscarmos no direito romano, fonte do direito de todos os países de tradição romano-germânica e fonte subsidiária de países filiados ao sistema do Common law, a ideia de poligamia era rechaçada desde seus primórdios.

Paul Veyne, na obra “História da Vida Privada” coordenada por Philippe Ariès e Georges Duby, ao analisar a família romana afirma de forma enfática:

“Justas núpcias ou concubinato, a monogamia reina sozinha.”

Pietro Bonfante explica que o matrimônio romano sempre foi severamente monogâmico entre os romanos. A intenção ética de se constituir um consórcio perpétuo exclui de modo absoluto a agregação de condição ou termo (Instituições de Direito Romano, 2ª edição, Madrid, Reus, p. 180).

Em igual sentido, Erbert Chamoun inicia suas lições sobre o tema afirmando que o matrimônio romano foi sempre monogâmico, “neque duobus nupta esse potest, neque idem duas uxores habem”. (Instituições de Direito Romano, 3ª Ed., Rio de Janeiro, Forense, 1957, p. 160).

Após a queda do Império romano do Ocidente, ou seja, na Idade Média, a forte influência da Igreja Católica torna o matrimônio um sacramento e a ideia de poligamia fica completamente afastada.

Conforme explica Álvaro Villaça Azevedo, já nos tempos do Imperador Justiniano, houve limitação ao número de uniões concubinárias, proibindo-se que um homem tivesse mais do que uma concubina e não poderia ter nenhuma se fosse casado. Lembra o autor que o Direito Canônico regulou o concubinato com o objetivo de assegurar a monogamia e a estabilidade do relacionamento do casamento, sem ratificá-lo. (Estatuto da Família de Fato, 2ª Ed, São Paulo, Atlas, 2002, p. 155).

Ao explicar a situação de Portugal no Século XVI, Capistrano de Abreu reforça a verdadeira simbiose entre Estado e Igreja, porque o Estado reconhecia e acatava as leis da Igreja, executava as sentenças de seus tribunais, declarava-se incompetente em quaisquer litígios debatidos entre clérigos. (Capítulos da História Colonial, Edições do Senado Federal, v. 65, Brasília, 2006, p. 25).

Evidente, então, à luz das regras de Direito Canônico, o casamento era monogâmico e, assim, as Ordenações do Reino punem de maneira vigorosa a bigamia. Assim vejamos o texto de cada uma delas.

As Ordenações Manuelinas, em seu livro V, título XIX, repetem a pena de morte para os bígamos:

“Todo o homem que sendo casado, e recebido com uma mulher e não sendo dela apartado por Juízo da Igreja se com outra se casar e se receber, morra por isso; e todo o dano que as mulheres receberem, e todo o que delas levar sem razão, corrija-se pelos bens dele como for Direito. E esta mesma pena haja toda mulher que dois maridos receber, e com elas casar, ora ambos os matrimônios fossem inválidos por Direito, ora um deles”.

Por fim, as Ordenações Filipinas que, em matéria criminal, vigeram no Brasil até a edição do Código Criminal do Império que data de 1830, dispunham em seu Livro V, título XIX:

“Todo homem que sendo casado e recebido com uma mulher, não sendo o Matrimônio julgado por inválido pelo Juízo da Igreja, se com outra se casar, e se receber, morra por isso. E todo o dano, que as mulheres receberem, e tudo que delas haver sem razão, satisfaça-se por bens dele, como for de Direito. E esta mesma pena haja toda mulher que dois maridos receber e com eles se casar pela sobredita maneira, o que tudo terá lugar ora ambos os matrimônios fossem inválidos por Direito, ora um deles”.

O texto das Ordenações Filipinas, apesar de ter 150 anos a mais que o texto das Afonsinas, mantém preceito idêntico para os bígamos: pena de morte e indenização patrimonial ao cônjuge enganado.

Note-se que a regra é anterior ao Século XV, pois data do reinado de D. Dinis que se iniciou em 1279 e terminou em 1325.

Assim, na tradição européia antiga e medieval não se fala em poligamia como instituto reconhecido pelos diversos sistemas jurídicos europeus. Ao contrário, por mais de 500 anos, para o Direito brasileiro a pena imputada ao bígamo era a morte.

b) a tradição brasileira

A sociedade portuguesa do Século XV que funda bases na América quando das Descobertas já era sociedade estabelecida sobre padrões de monogamia, pois respirava, há séculos, modelo romano monogâmico reforçado pelo Direito Canônico posterior.

Contudo, apesar desta assertiva, o Brasil, durante seu período colonial, teve duas importantes oportunidades para assimilar a poligamia como forma de constituição de famílias: a primeira com os indígenas e a segunda com relação aos escravos africanos.

Se entre os habitantes do continente americano que habitavam o território brasileiro a poligamia existia e disso se tem notícias históricas, após a colonização o costume foi desaparecendo por não contar com amparo jurídico do sistema das Ordenações, conforme já dissemos.

Em sua obra “Índios do Brasil”, Julio Cezar Melatti conta que mesmo entre os índios a prática não era totalmente aceita. Os xavantes, os teneteharas e os tupinambás a aceitavam. Os timbiras eram monogâmicos. Os nambiquaras só a permitiam entre os chefes do bando (http://books.google.com.br/books, cf. p. 131).

Assim, mesmo entre os índios brasileiros a regra era repudiada por certas tribos, não se podendo afirmar que os habitantes americanos eram polígamos por excelência.

A participação do indígena na formação da família brasileira só foi possível, conforme leciona Gilberto Freyre, porque os portugueses eram menos ardentes na ortodoxia que os espanhóis e menos estritos que os ingleses nos preconceitos de cor e de moral cristã. Nas palavras do autor, híbrida desde o início, a sociedade brasileira é de todas da América a que se constituiu mais harmoniosamente quanto às relações de raça: dentro de um ambiente de quase reciprocidade cultural que resultou no máximo de aproveitamento dos valores e experiências do povo indígena pelos portugueses; no máximo de contemporização da cultura adventícia com a cultura nativa da do conquistador com a do conquistado (Casa Grande e Senzala, Editora Global, 2011, p. 160).

E Gilberto Freyre reconhece que a monogamia nunca foi geral nas áreas de cultura americana invadidas pelos portugueses e a poligamia existia entre as tribos que se conservavam intactas da influência moral européia (op. cit., p. 167).

Note-se que, no processo de trocas culturais entre o europeu colonizador e o indígena colonizado, a poligamia de certas comunidades indígenas não foi adotada pela sociedade brasileira que se formava nos Séculos XV e XVI. O processo de assimilação cultural rechaçou o modelo poligâmico de família. Houve uma opção histórica e social pela monogamia.

A outra oportunidade que o Brasil teve de adotar a poligamia foi em razão das trocas culturais com os escravos vindos da África. Apesar de terem chegado ao Brasil escravos das mais diversas etnias e localidades, foram trazidos escravos de áreas penetradas pelo islamismo e poligâmicos, portanto, de cultura superior não só à dos indígenas, como também à da grande maioria dos colonos brancos.

Em suma, apesar do estreito convívio íntimo entre senhores e escravos, da forte miscigenação decorrente deste convívio, o Brasil não assimilou a poligamia trazida da África por certas comunidades daquele continente.

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