Poligamia, casamento homoafetivo, escritura pública e dano social: uma reflexão necessária ? Parte 3

Superada a questão pela qual sociológica e historicamente o Brasil não optou pela forma poligâmica de família, apesar de o influxo cultural poligâmico histórico, necessário se analisar tecnicamente o efeito da escritura lavrada em Tupã.

A monogamia é um valor socialmente consolidado e historicamente construído.

Em termos jurídicos, temos duas regras que aniquilam qualquer possibilidade de se admitir a bigamia no sistema jurídico brasileiro, uma de ordem civil e outra criminal.

A primeira está no Código Civil que prevê a mais dura sanção reconhecida pelo ordenamento em ocorrendo o casamento bígamo: a nulidade absoluta (arts. 1521, VI e 1548 do CC).

Se é verdade que o Direito Penal não mais reconhece no sistema brasileiro a pena de morte ou açoite, e se não há mais tribunais do Santo Ofício, nem por isso o crime de bigamia deixa de ser tipificado. Assim, o Código Penal brasileiro prevê em seu artigo 235 que é crime contrair novo casamento, sendo casado e a pena é de reclusão de 2 a 6 anos.

Nas palavras de Pedro Lazarini, “busca-se com essa previsão tutelar a instituição do casamento e a organização familiar que dele decorre, estrutura fundamental do Estado, que são colocados em risco com as novas núpcias” (Código Penal Comentado, 4ª Ed., Primeira Impressão, 2010, p. 973).

Poder-se-ia argumentar de maneira pueril: a escritura de Tupã não cria poligamia, porque não há casamento, mas simples união estável! Em termos jurídicos, a interpretação que esse argumento dá ao Código Penal e Civil seria a literal e não teleológica.

O sistema não concebe, com base em um valor secular, a possibilidade de dupla união como forma de constituição de família. Daí resultar curiosa a afirmação da tabeliã: “Só estamos documentando o que sempre existiu. Não estamos inventando nada”. (http://noticias.terra.com.br/brasil/noticias).

Se sempre existiram famílias poligâmicas e isso não se nega, NUNCA o sistema jurídico brasileiro as admitiu. Muito menos sob a forma de união estável, que como forma de constituição de família, conta com a proteção da Constituição (art. 226, par. 3º).

No debate sobre o tema, há argumentos no seguinte sentido: se a união estável homoafetiva que não conta com expressa previsão legal é possível, se o casamento homoafetivo também o é, nenhum problema há com a união poligâmica.

Este argumento simplesmente demonstra absoluto desconhecimento do Direito Civil e de suas categorias por parte do interlocutor.

Quando se tratava historicamente de casamento de pessoas do mesmo sexo, à luz dos ensinamentos de Zachariae von Linghental ocorridos em meados do Século XIX, dizia-se que o casamento era inexistente e não inválido.

Note-se: a dualidade de sexos era compreendida como elemento de existência do casamento. A escola da exegese francesa, que tem em Aubry e Rau seus expoentes, afirmava que o ato que não reúne os elementos de fato de sua natureza e sem os quais é logicamente impossível, deve ser considerado não apenas nulo, mas inexistente.

Fato é que a noção jurídica de existência ou não de um instituto sofre alterações conforme a mudança social que se opera.

O Código Civil e a Constituição Federal brasileira não exigem dualidade de sexo como elemento de existência do casamento. Se muda a realidade social, mudam também os elementos de existência do casamento.

Assim, o STJ, ao admitir o casamento de pessoas do mesmo sexo, apenas percebeu que o conceito de casamento se alterou com o passar dos séculos. Não se trata mais de união entre o “homem e a mulher”, mas sim de união entre “pessoas”.

O mesmo não pode se dizer da poligamia escriturada em Tupã. Não se trata de elemento de existência, mas sim de requisito de validade do negócio jurídico. Havendo causa de proibição legal, seja ela culminada de sanção penal ou civil, a afronta à norma cogente acarreta nulidade absoluta da escritura poligâmica tupanense.

A única conclusão que se chega é que e escritura é nula, nos termos do art. 166, por motivo evidentemente ilícito (contra o direito) e por fraudar norma imperativa que proíbe uniões formais ou informais poligâmicas.

Para que se admitisse o casamento de pessoas do mesmo sexo, não havia necessidade de mudar o Código Civil porque não há artigo que expressamente determine: o casamento se dá entre o homem e a mulher.

Entretanto, para se admitir a poligamia como forma de criação de família, é imprescindível a revogação do CP que a trata como crime e do CC que pune com e sanção maior: nulidade absoluta.

Note-se, portanto, como o desconhecimento de categorias jurídicas pode levar a afirmações que parecem corretas, de acordo com um discurso político-ideológico, mas não se sustentam em termos jurídicos.

Em suma, o próprio Supremo Tribunal Federal já decidiu pela base monogâmica da família quando se deparou com a questão:

“É certo que o atual Código Civil, versa, ao contrário do anterior, de 1916, sobre a união estável, realidade a consubstanciar o núcleo familiar. Entretanto, na previsão, está excepcionada a proteção do Estado quando existente impedimento para o casamento relativamente aos integrantes da união, sendo que se um deles é casado, o estado civil deixa de ser óbice quando verificada a separação de fato. A regra é fruto do texto constitucional e, portanto, não se pode olvidar que, ao falecer, o varão encontrava-se na chefia da família oficial, vivendo com a esposa. O que se percebe é que houve envolvimento forte (…) projetado no tempo – 37 anos – dele surgindo prole numerosa – 9 filhos – mas que não surte efeitos jurídicos ante a ilegitimidade, ante o fato de o companheiro ter mantido casamento, com quem contraíra núpcias e tivera 11 filhos. Abandone-se a tentação de implementar o que poderia ser tido como uma justiça salomônica, porquanto a segurança jurídica pressupõe respeito às balizas legais, à obediência irrestrita às balizas constitucionais. No caso, vislumbrou-se união estável, quando na verdade, verificado simples concubinato, conforme pedagogicamente previsto no art. 1.727 do CC (RE 397.762-8/BA, j. 03/06/2008)”

III – O dano social

De início, deve-se frisar a importância que os Tabeliães e Registradores têm no sistema jurídico brasileiro.

Não pretendo aqui apenas reafirmar o óbvio: que o serviço notarial e registral são imprescindíveis para a segurança jurídica, e que há enormes vantagens em se retirar do Poder Judiciário questões relevantes e que são exemplarmente desenvolvidas pelos Cartórios (vide a competência decorrente da Lei 11.441/07).

Pretendo lembrar a tradição que tem os Tabelionatos nas pequenas cidades brasileiras de verdadeira orientação jurídica dos cidadãos. O padre é o conselheiro espiritual e o Tabelião o conselheiro jurídico. É frase corrente no Brasil, quando se quer atestar a seriedade de um ato, que “faremos a declaração em Cartório”.

A seriedade das atividades notariais e registrais vai além do texto da Lei. 6.015/73 ou dos princípios do direito privado. Ela decorre dos séculos de bons serviços prestados por esses profissionais cuja credibilidade supera, em muito, outros órgão e poderes brasileiros.

Assim, na mentalidade brasileira, se quero realizar algo sério, procuro o aconselhamento de um tabelião para, então, obter um documento do Cartório.

É essa seriedade, são os anos de construção de credibilidade, que a escritura pública de Tupã pretende aniquilar, com a surpreendente declaração da tabeliã: “eu fui averiguar se existia algum impedimento legal e verifiquei que não havia”. Assim vejamos a questão sob a ótica do Direito e da sociedade.

Conforme já dito, não seria necessário profundo estudo para se perceber a nulidade absoluta do instrumento lavrado.

A escritura, se cuidasse apenas de sociedade de fato entre três pessoas, sem qualquer repercussão para o direito de família, mas apenas com aspectos obrigacionais, nenhum problema jurídico teria.

Então fica uma pergunta a ser respondida: qual a consequência prática de se lavrar uma escritura evidentemente nula?

Notemos o que diz a tabeliã que lavrou a escritura em questão para podermos responder o questionamento:

“Se essa família tiver um filho, como funcionaria o registro? Essas questões terão que ser decididas pela Justiça. Assim também foi com os casais homoafetivos, que tiveram que brigar muito para que dois homens ou duas mulheres conseguissem colocar seus nomes numa certidão de nascimento.” (http://noticias.terra.com.br/brasil/noticias)

Note-se: há um claro dano aos filhos da poligamia que sequer terão direito à origem genética sem se submeterem ao exame de DNA.

Há um claro dano aos supostos “conviventes” que acreditam que têm direitos e não os terão, em razão da nulidade absoluta da escritura pública.

Há, por fim, um dano aos Tabeliães do Brasil cuja seriedade é posta em xeque de maneira evidente, quando a imprensa passa a noticiar que é possível casamento poligâmico no Brasil.

Em suma, seguindo as lições de Antonio Junqueira de Azevedo, há dano social quando há rebaixamento imediato de nível da população, há uma redução da qualidade coletiva de vida.

A escritura pública de Tupã é motivo de perda da confiança no sistema notarial brasileiro. É motivo de descrença da população nos Tabelionatos de Nota do país.

Assim todo e qualquer tabelião está legitimado para demandar indenização face à pessoa física da tabeliã que causou o dano social e dele faz publicidade.

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