A semana foi bem agitada em termos de Direito de Família e das Sucessões. Dois temas de grande repercussão na impressa merecem algumas palavras em razão do impacto sobre o Direito de Família e sobre as famílias.
1. A declaração de inconstitucionalidade do artigo 1.790 do CC pelo STF
O julgamento não acabou, mas já foram SETE os ministros que reconheceram a inconstitucionalidade do artigo 1.790 do CC. Trata-se do julgamento do RE 878.694/MG, com repercussão geral, que se iniciou em 31 de agosto. Dias Toffoli pediu vista.
Conforme antecipado a meus alunos em sala de aula, em conversa com o ministro Lewandowski na semana anterior ocorrida na Faculdade de Direito do Largo São Francisco, este dissera uma frase que indicava o destino do dispositivo em questão: “O STF tem sido bem liberal em Direito de Família”.
O voto do ministro Barroso, relator do recurso, tem dois fundamentos basilares: 1) o Estado deve proteger a família não só constituída pelo casamento, mas qualquer entidade familiar que seja apta a contribuir para o desenvolvimento de seus integrantes; 2) o artigo 1.790, ao revogar as leis de 1994 e 1996, discrimina os companheiros, dando-lhes tratamento bem inferior ao dado aos cônjuges em contraste aos princípios da dignidade da pessoa humana, da igualdade, da proporcionalidade, como vedação à proteção deficiente e da vedação do retrocesso.
Por fim, menciona que a decisão só se aplica aos inventários judiciais em que não tenha havido o trânsito em julgado da sentença e às partilhas extrajudiciais em que não tenha havido escritura pública.
A orientação do STF encontra base doutrinária sólida: Giselda Hironaka. Há 15 anos, ela vem afirmando a inconstitucionalidade do dispositivo e o faz de maneira contundente em sua tese de titularidade defendida no Largo São Francisco, posteriormente publicada com o título Morrer e Suceder. No ano passado, no Congresso Nacional do IBDFam, eu defendia a constitucionalidade do dispositivo, e Giselda, a inconstitucionalidade. Foi a doutrina dela que prevaleceu.
Entendo eu que o Código Civil pode tratar de maneira igual em termos sucessórios as famílias advindas do casamento e da união estável. Tratamento diferente não significa que certa modalidade familiar é “pior” ou “inferior”. Só significa que é diferente. A lei não está obrigada a tratar de maneira idêntica casamento e união estável.
O único ponto de efetiva afronta à proibição ao retrocesso diz respeito ao inciso III do dispositivo, que, diferentemente do que ocorreria com a Lei 8.971/94, coloca o companheiro em situação pior que a do colateral. Pela lei de 1994, o companheiro sobrevivo excluía os colaterais (artigos 2º, III), e pelo artigo 1.790 do CC há concorrência entre eles, recebendo o colateral 2/3 da herança, e o companheiro, apenas 1/3.
Contudo, para o STF, toda e qualquer distinção sucessória é discriminatória, logo, para os companheiros, aplicam-se todas as regras sucessórias referentes aos cônjuges. A decisão tem os seguintes efeitos:
- aplica-se ao companheiro a ordem de vocação hereditária do artigo 1.829 e, como consequência, os artigos 1.832 (quinhão que recebe o companheiro em concorrência com descendentes), 1.837 (quinhão que recebe o companheiro em concorrência com o ascendente) e 1.838 do CC (companheiro exclui da sucessão os colaterais);
- aplica-se ao companheiro o artigo 1.830 do CC, ou seja, se o companheiro estiver separado de fato, há perda da qualidade de herdeiro[1];
- o companheiro tem direito real de habitação garantido nas mesmas condições que se garante ao cônjuge (artigo 1.831);
- o companheiro passa a ser herdeiro necessário (artigo 1.845 do CC);
- afastam-se as dúvidas quanto à declaração de vacância da herança em havendo companheiro, ou seja, a herança tocará por inteiro a ele (bens adquiridos a qualquer título, antes ou depois da união), e não ao ente público (artigo 1.844).
Em 2011, escrevi um artigo denominado Em busca da harmonia perdida[2], cujo objetivo era demonstrar como os tribunais rejeitavam a aplicação do artigo 1.790 do CC para equiparar a sucessão do companheiro à do cônjuge. O julgador, em várias decisões, demonstrava que não aceitou a desigualdade trazida pelo CCI (isso porque, pelo direito vigente anteriormente — leis de 1994 e 1996 —, a equiparação sucessória era total). Fui profético ao afirmar que o Direito sempre busca um caminho para se amoldar à realidade, assim como a natureza sempre dá uma solução[3]. A profecia se realizou cinco anos depois, com a decisão do STF.
Contudo, tenho que dizer que não concordo com a orientação do STF. Se ela é justa, pois retoma a equiparação existente até 2003, não se pode afirmar que o artigo 1.790 era como um todo inconstitucional. Respeitava-se a diferença entre as famílias e a liberdade de escolha dos modelos familiares. Não havia modelo pior ou melhor (isso seria discriminatório), mas apenas diferente. Com a decisão, o próximo passo que se dará será se reconhecer identidade de efeitos também para o Direito de Família com a total equiparação entre união estável e casamento.
Não é salutar retirar parcela de liberdade individual equiparando-se totalmente os modelos familiares. O Código Civil não pretendeu, nem a Constituição exigiu tal identidade de efeitos. Contudo, o assunto está encerrado com a decisão do STF. Casar ou se unir estavelmente produzem iguais efeitos sucessórios e, porque não, no âmbito familiar.
Há um ponto positivo: acabou a insegurança jurídica quanto ao tema.
2. Tio que paga alimentos a sobrinho?
O artigo 1.697 do CC é expresso: somente os colaterais de segundo grau (irmãos) podem pagar alimentos de maneira subsidiária, ou seja, se os ascendentes e descendentes não puderem suprir as necessidades do credor de alimentos.
Tio é colateral de terceiro grau, logo, nunca, de maneira alguma, é obrigado a pagar alimentos ao sobrinho. Em São Carlos, interior de São Paulo, o magistrado Caio Cesar Melluso proferiu uma decisão em sentido contrário, condenando-se o tio a pagar alimentos ao sobrinho (Processo 1007246-25.2016.8.26.0566).
O fundamento da decisão é a lição de Maria Berenice Dias: o tio é parente de terceiro grau, logo herdeiro, se tem os bônus deve ter também os ônus. “Os graus de parentesco não devem servir só para se ficar com os bônus, sem a assunção do ônus.”
Afirma a decisão de São Carlos que “o artigo 1.697 diz menos do que a intenção da norma jurídica e portanto deve ser interpretado de maneira extensiva, conforme a Constituição Federal”.
Entendo a situação do magistrado. Vendo uma pessoa que necessita de alimentos desamparada, o magistrado condoído se vale do que tem para não deixar um ser humano à míngua. É uma postura humanitária e com as melhores intenções. Frise-se que o autor da ação tem Síndrome de Asperger, o que comoveu enormemente o magistrado. Contudo, a decisão é perigosa e com bases fragilíssimas.
Perigosa, pois se levado ao extremo o princípio constitucional da solidariedade, negando vigência expressamente ao CC, poderia se concluir que toda a pessoa que pode deve pagar alimentos a quem precisa, pois, afinal, não se pode deixar um semelhante em situação de necessidade. A solidariedade se estenderia aos vínculos mais tênues: vizinhos, conhecidos, colegas de clube ou mesmo aos desconhecidos. Solidariedade contra legem não é solidariedade.
Frágil é a base técnica: “Quem tem os bônus tem que ter ônus”. Os colaterais são parentes. Ser parente é um estado. Não implica bônus nem implica ônus. No Direito Eleitoral, por exemplo, pode implicar impedimentos. Isso é ônus? Não, não é. É uma decorrência do parentesco. Em Direito, ônus e bônus existem, quando muito, em contratos bilaterais sob a forma de prestações.
E se o parentesco colateral bônus fosse, o tio não é herdeiro senão em tese. O colateral só herda se o falecido não tiver descendentes, ascendentes, nem cônjuge ou companheiro. Ademais, só herda o colateral de terceiro grau (tio) se o falecido não tiver irmãos (colateral de segundo grau) nem sobrinhos (colateral de terceiro grau — artigo 1.843).
No caso concreto, o credor dos alimentos tem seus ascendentes (pais e avós), logo o tio condenado à prestação alimentar sequer tem “bônus”. Se a sentença afirmasse: “Como o tio é herdeiro e, no caso concreto, tem os bônus”, seria menos ilógica. Mas, não, o tio condenado à prestação alimentar não tem qualquer bônus.
Os bônus são remotíssimos, mas o ônus atual. Nenhuma relação de família se pauta pela lógica de ônus e bônus. Há desequilíbrio em todas as relações de Direito Civil. O doador tem ônus, e o donatário, bônus, logo a doação fere a Constituição? O locatário tem proteção garantida por lei, e o locador, não, e os bônus geram ônus? E assim os exemplos se multiplicam.
A noção de família em sentido restrito é a utilizada pelo Código Civil para fins de alimentos. Ruim ou boa, certa ou errada, a lei deve ser aplicada ou alterada pelo Congresso Nacional. Transformar os alimentos em seguridade social é um perigo, pois a Justiça ganha contorno de Robin Hood: dar aos pobres, tirando dos ricos[4].
A lei é a reserva de segurança mínima. Seu desrespeito, mesmo por uma causa nobre, abre espaço para afronta a direitos e garantias em situações não tão nobres. E na história recente os regimes de exceção bem demonstraram isso…
[1] Não se discute o lapso de dois anos nem culpa após a Emenda 66/2010.
[2] SIMÃO, José Fernando. Em busca da harmonia perdida. In: LAGRASTA NETO, Caetano; TARTUCE, Flávio; SIMãO, José Fernando. (Org.). Direito de família: novas tendências e julgamentos emblemáticos. São Paulo: Atlas, 2011, v. , p. 111-136.
[3] Menção ao filme Jurassic Park e o fato de surgirem os dinossauros machos a partir de fêmeas apenas.
[4] Essa ideia agrada parte da civilística nacional.