Fidelidade: um dever jurídico ou um elemento moral?

Recebi nesta semana, por meio do amigo Ricardo Aronne, uma notícia sobre projeto de lei apresentado ao Parlamento italiano que pretende alterar o artigo 143 do Código Civil de 1942, para abolir o dever de fidelidade dos cônjuges[1].

Segundo a senadora italiana Laura Cantini, o argumento para sua retirada do Código Civil é que se trata de retalho de uma visão superada e vetusta do matrimônio, mormente após a vigência da Lei 219 de 2012, que aboliu a distinção entre filhos legítimos e naturais. Essa distinção seria a base da proibição da infidelidade.

A redação atual do dispositivo italiano é a seguinte:

“Do casamento deriva o dever recíproco de fidelidade, de assistência moral e material, de colaboração no interesse da família e de coabitação”[2].

A partir da notícia, creio que algumas reflexões merecem ser feitas:

  • Qual a razão histórica para que o Código Civil exija a fidelidade entre cônjuges?
  • Outros países de tradição romano-germânica trazem igual dever?
  • A fidelidade está superada no atual momento histórico, revelando-se um arcaísmo?

1. Notas históricas
Adultério vem do latim adulterium, que tem no léxico a preposição ad (perto de, aproximação), a raiz alter (o outro) e o sufixo io (como efeito, resultado)[3] — ad alterius thorum ire, ou seja, andar em leito alheio. Adultério significa ir em direção a outro, ou seja, buscar cópula carnal com aquele que não é seu cônjuge.

Infidelidade tem o prefixo in, que significa a negação. Fidelidade tem por raiz fides, ou seja, fé. Infiel é aquele que não comunga da mesma fé, ou que rompe a confiança.

Logo, adultério ou infidelidade são sinônimos, conquanto, em termos legais, usa-se adultério associado a um tipo penal[4], e infidelidade ao descumprimento de um dever civil.

Não é nova a previsão de punição civil e criminal ao adultério no Direito brasileiro.

As Ordenações Filipinas previam, no Livro V, Título XXV que:

“Mandamos que o homem que dormir com mulher casada e que em fama de casada tiver, morra por ello. Porém se o adúltero for de maior condição que o marido dela, assim como se o tal adultero fosse Fidalgo, e o marido Cavaleiro ou Escudeiro, ou o adúltero Cavaleiro ou Escudeiro, e o marido peão, não farão as Justiças nele execução, até no-lo fazerem saber e verem sobre isso nosso mandado”.

“Morra por ello”, ensina Candido Mendes, significa de morte natural, o que significa que a pena não é a simples morte civil[5].

E o Título XXV prossegue:

“Toda a mulher que fizer adultério a seu marido, morra por isso”.

Note-se que, desde as Ordenações, o dever de fidelidade era norma cogente e não poderia ser afastado por vontade das partes. A pena para o homem que consentisse com o adultério de sua mulher era que ambos seriam açoitados e degredados para o Brasil. Já o adúltero teria o degredo perpétuo para África[6].

Açoitados com “senhas capelas de cornos”, ou seja, cada um com sua grinalda de cornos. “Senhas” vem do latim singuli e significa cada um o seu, a sua. Na Alemanha, o marido era colocado montado em um asno com a face voltada para a cauda do animal, o qual era conduzido pela mulher, e o pregoeiro dizia: qui si faciet, qui si capiet.[7]

O Esboço, de Teixeira de Freitas, de 1860, já previa a fidelidade e os efeitos de sua quebra:

“Artigo 1.304. Os cônjuges ficam reciprocamente obrigados a guardar-se fidelidade, sem que a infidelidade de um autorize o outro para proceder do mesmo modo. Aquele que faltar a esta obrigação poderá ser demandado a requerimento do outro, civilmente, por ação de divórcio, criminalmente, por acusação de adultério”.

No mundo ocidental, o adultério masculino sempre foi visto como algo natural e tolerável. Exemplifica a questão da tolerância a frase atribuída ao rei de Portugal, D. João V. Esse monarca tinha conhecido hábito de manter relação sexual com freiras, tomando uma como sua amante (Madre Paula). A rainha austríaca (Maria Ana) reclama ao padre, seu confessor, desse hábito do marido. O confessor repreende o rei, então. A partir da repreensão, determina o rei que só se sirva galinha ao padre. Quando decorrido certo tempo, o padre reclama da monotonia de só comer galinha, e o rei lança a frase que entra para a História: “Nem sempre galinha, nem sempre rainha!”.

A lição de Washington de Barros Monteiro, datada da década de 1970, pela qual do ponto de vista puramente psicológico torna-se sem dúvida mais grave o adultério da mulher, pois a infidelidade do homem é fruto de um capricho passageiro ou de um desejo momentâneo, e seu deslize não afeta de modo algum o amor pela mulher, já o adultério feminino vem demonstrar que se acham definitivamente rotos os laços afetivos que a prendiam ao marido e irremediavelmente comprometida a estabilidade do lar, é demonstração inequívoca e pura de anacronismo[8].

Abolido o direito de vida e morte do marido sobre a mulher, o adultério, então, passa a ser tipificado como crime.

Com a forte influência da Igreja Católica e do Direito Canônico, para quem o adultério de marido e mulher são igualmente graves, o adultério masculino também passa a ser punido. O artigo 250 do Código Criminal do Império do Brasil (de 1830) determina que “a mulher casada, que commetter adulterio, será punida com a pena de prisão com trabalho por um a tres annos. A mesma pena se imporá neste caso ao adultero”.

Também o artigo 279 do Código Penal de 1890 prevê que “a mulher casada que commetter adulterio será punida com a pena de prisão cellular por um a tres annos. Em igual pena incorrerá o marido que tiver concubina teuda e manteuda; a concubina e o co-réo adultero”.

Em termos históricos, Clóvis Beviláqua ensina que fidelidade “é o primeiro e o mais importante dos deveres recíprocos dos cônjuges, é a expressão natural da monogamia e não constitui simplesmente um dever moral. O direito exige tal dever em nome dos interesses superiores da sociedade”[9].

E quais são os interesses superiores da sociedade?

Efetivamente, se o dever de fidelidade não existisse, o problema na identificação da paternidade dos filhos, pelo menos em termos biológicos, seria algo problemático para as famílias. A questão biológica é relevante no mínimo para se evitar futuros incestos.

Ademais, a monogamia como valor jurídico seria posta em xeque. Relações plurais não são admitidas pelo Código Civil, quer por meio da nulidade do casamento (artigo 1.521, VI do CC), quer por meio de seu afastamento do Direito de Família (artigo 1.727 do CC), precisariam ser aceitas.

2. Demais países — poucos exemplos.
A segunda pergunta que se faz é se o dever de fidelidade está presente em outros países de tradição romano-germânica.

Na legislação comparada, o Código Civil francês expressamente menciona o dever de fidelidade para os cônjuges. Mesmo após a mudança ocorrida em razão da Lei 399 de 2006, que inclui a palavra “respeito”, o dever de fidelidade prossegue:

“Artigo 212. Os cônjuges devem-se mutuamente respeito, fidelidade, colaboração e assistência”[10].

Não é outra a redação do Código Civil português:

“Artigo 1.672. Deveres dos cônjuges. Os cônjuges estão reciprocamente vinculados pelos deveres de respeito, fidelidade, coabitação, cooperação e assistência”.

O Código Civil espanhol determina no artigo 68:

“Os cônjuges estão obrigados a viver juntos, guardar fidelidade e se auxiliar mutuamente. Deverão, ainda, dividir as responsabilidades domésticas e o cuidado e a atenção com descendentes, ascendentes e outras pessoas dependentes que estejam sob seu encargo”[11].

Os poucos exemplos indicam que a fidelidade está presente nos demais ordenamentos de matriz mRNA.

3. Fidelidade: dever jurídico ou moral?
Pelo que explicamos, a fidelidade se encontra na tradição histórica do Direito brasileiro e de vários outros países. É verdade que no passado a questão era tida como socialmente reprovável e tão grave a ponto de gerar pena de morte.

O tempo passa, e a sociedade muda. Se o sistema se alterou para não mais tipificar o adultério nas leis penais, há uma compreensão de que a regra era vestusta e não consentânea com os tempos atuais. O Direito Penal, com última ratio, assume que o problema da infidelidade não interessa ao Estado repressor. Há questões outras, efetivamente sérias, que merecem penas restritivas de liberdade.

Com a Emenda 66/2010, que alterou o artigo 226, parágrafo 6º da CF, fazendo com que o instituto da culpa desaparecesse do Direito de Família no tocante ao fim da conjugalidade, a questão que surge é a seguinte: qual é a o efeito jurídico do descumprimento dos deveres conjugais (artigo 1.566 do CC)?

No passado, a quebra dos deveres era causa de separação-sanção com penas imputadas ao culpado. A separação de direito (judicial ou extrajudicial) desaparece do sistema brasileiro em 2010, e com ela desaparecem as punições decorrentes da culpa (perda de direito do uso de sobrenome do outro, por exemplo).

Logo, o próprio dever de fidelidade fica enfraquecido em termos jurídicos, já que, as únicas “punições” ao infiel serão responder por danos morais se estes foram efetivamente causados, bem como a redução no valor dos alimentos que receberá do inocente (artigo 1.704, p. único do CC), seguindo-se o binômio possibilidade/necessidade.

Porém, esse “enfraquecimento” eficacial (para o Direito Civil), e não tipificação (para o Direito Penal), implica dizer que o dever de fidelidade deve ser retirado do Código Civil como pretende a Itália?

De início, cabem duas ponderações quanto aos efeitos de sua supressão:

  • A supressão da fidelidade deve gerar necessariamente a supressão da presunção de paternidade pater is est. O marido da mulher casada é presumidamente pai do filho desta em razão da fidelidade. Sem tal dever, a presunção perde a razão de existir. A relação paterno-filial passará a independer do vínculo consanguíneo.
  • A supressão da fidelidade exigirá uma revisão da monogamia como princípios. Se a liberdade sexual do casado não sofre restrição, por que a família teria de ser ainda monogâmica? Da supressão do dever de fidelidade decorreria naturalmente a supressão do impedimento matrimonial que se refere à bigamia.

Como linha final, penso que efetivamente, se o Congresso Nacional cogitasse abolir a fidelidade, o tema deveria passar por uma ampla reflexão social, pois, afinal, não haveria simples ampliação da liberdade sexual, mas uma efetiva e inovadora mudança na concepção de família:

  • as uniões plurais (eufemismo para poligâmicas) passariam a ser possíveis tanto no casamento quanto na união estável;
  • os filhos seriam aqueles que a pessoa cria como tal. Do fim da fidelidade nasceria, como regra, a prevalência da parentalidade socioafetiva. Seria o fim da tirania do exame de DNA e da consanguinidade.

[1] http://www.repubblica.it/politica/2016/02/25/news/senatori_pd_via_dal_codice_civile_l_obbligo_di_fedelta_tra_coniugi_-134205875/?refresh_ce
[2] Dal matrimonio deriva l’obbligo reciproco alla fedeltà, all’assistenza morale e materiale, alla collaborazione nell’interesse della famiglia e alla coabitazione (Cod. Pen. 570).
[3] http://etimologias.dechile.net/?adulterio
[4] O adultério deixou de ser crime no Brasil com a edição da Lei 11.106 de 2005, que revogou o artigo 240 do Código Penal.
[5] Nota ao Título XXV do Livro V das Ordenações, p. 1773.
[6] Livro V, Título XXV, 9.
[7] Nota de Cândido Mendes ao Título XXV do Livro V das Ordenações, p. 1773.
[8] Curso de Direito Civil: Direito de Família. V. 2. São Paulo: Saraiva, 1978, p. 10.
[9] Código Civil comentado, Francisco Alves, 1956, São Paulo, v. 2, p. 87 (comentário ao artigo 231 do CC/1916).
[10] “Les époux se doivent mutuellement respect, fidélité, secours, assistance”.
[11] “Los cónyuges están obligados a vivir juntos, guardarse fidelidad y socorrerse mutuamente. Deberán, además, compartir las responsabilidades domésticas y el cuidado y atención de ascendientes y descendientes y otras personas dependientes a su cargo”.

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