Em mais uma acalorada discussão, nosso grupo virtual de debates jurídicos coordenado pelo Prof. Flávio Tartuce, tratou do seguinte tema: a redução da cláusula penal pelo juiz, nos termos do art. 413 do Código Civil, deve se realizar de ofício?
De início, cabe lembrar o conceito de cláusula penal que, popularmente, é denominada multa contratual. É a obrigação acessória a um contrato, pela qual o devedor se obriga a uma prestação determinada no caso de descumprimento do contrato ou de qualquer uma de suas cláusulas.
Nota-se, logo, que a palavra multa tem mais de uma acepção, razão pela qual om ideal é a utilização do termo cláusula penal na redação do contrato. A astreinte, ou multa cominatória, por exemplo, não se confunde com a cláusula penal. O caráter coercitivo da multa cominatória é evidente. Substitui o castigo físico do direito antigo, já que ninguém pode ser coagido a prestar um fato (nemo potest precise cogi ad factum)
A função da cláusula penal é dúplice: i) estimular o devedor a cumprir sua obrigação, tornando mais onerosa à prestação e ii) pré-fixação ou pré-liquidação das perdas e danos. A cláusula penal libera o credor do ônus de provar os prejuízos sofridos, pois gera presunção absoluta de dano (art. 416, caput, do CC/02).
Seu caráter é acessório e, por isso, a cláusula penal pode ser estipulada conjuntamente ou em ato posterior à obrigação principal (art. 409 do CC/02). Como corolário da acessoriedade, a nulidade da obrigação principal acarreta a nulidade da cláusula penal, mas o contrário não é verdadeiro. Nulo o acessório, o principal mantém-se válido (utile per inutile non vitiatur).
São duas as espécies de cláusula penal:
i) compensatória: é aquela aplicada para a hipótese de descumprimento absoluto da obrigação (ex: se o inquilino desocupar o imóvel antes do fim do prazo locatício, paga multa de 3 aluguéis). Nessa hipótese, há uma alternatividade: ou se exige a prestação ou a cláusula penal.
ii) moratória: aplica-se às hipóteses de mora, ou de inadimplemento em que a prestação ainda é útil ao credor (art. 394 do CC/02 – ex: se o inquilino não pagar o aluguel no vencimento pagará multa de 10%). Nessa hipótese, há uma cumulatividade, pois paga-se a prestação acrescida da cláusula penal.
Sobre os limites da cláusula penal temos uma regra geral e algumas regras especiais.
a) Limitação decorrente da regra geral (art. 412 do CC/02): o valor da cláusula penal não pode exceder o valor da obrigação principal, sob pena de se tornar fonte de enriquecimento sem causa. A lógica da regra é evidente. Se a cláusula penal contém uma presunção absoluta de dano, ou seja, é devida ainda que não exista prejuízos, seu valor não pode exceder ao da obrigação principal. Se assim fosse haveria uma autorização do Código Civil ao enriquecimento injustificado do credor
Há, no próprio Código Civil, uma exceção. A cláusula penal, em regra, é o máximo da indenização a ser pleiteada. Entretanto, se houver previsão contratual ressalvando o direito de cobrança dos prejuízos suplementares, o valor da multa será o mínimo (art. 416, parágrafo único, do CC/02). Nessa hipótese, o credor prova o montante total de seus prejuízos, abrindo mão da vantagem da presunção de dano. Provando o credor que o valor total dos prejuízos é maior que o valor da multa contratada, terá direito à indenização pelos prejuízos excedentes.
Note-se que a possibilidade de o credor realizar tal prova necessita de expressa previsão contratual. No silencia do contrato, prevalece apenas o valor da cláusula penal
b) Limitação decorrente das regras especiais. Há alguns dispositivos, quer seja por previsão do Código Civil, quer seja em decorrência de leis especiais, que também geram limitação do valor da cláusula penal. Nestas hipóteses, havendo excesso, este deve ser desconsiderado (ineficácia do excesso), prevalecendo o limite imposto por lei para a cláusula penal.
b.1) art. 9° da Lei da Usura (Decreto 22.626/33): nos contratos de mútuo, a cláusula penal não poderá ser superior a 10% do valor da dívida;
b.2) Art. 52, §1° do CDC: O dispositivo prevê que a multa de mora não pode ser superior a 2% do valor da prestação. Esse dispositivo não se aplica apenas aos contratos de empréstimo (caput do art. 52), mas a toda e qualquer relação de consumo[1] . Nesse sentido temos:
” A jurisprudência deste Tribunal Superior já consolidou o entendimento de que a redução da multa moratória para 2% prevista no art. 52, § 1º, do Código de Defessa do Consumidor – CDC aplica-se às relações de consumo de natureza contratual. Assim, os contratos de prestação de serviços de fornecimento de água, por envolver relação de consumo, estão sujeitos à regra do § 1º do citado artigo. (AgRg no REsp 1433498/RS, Rel. Ministro MAURO CAMPBELL MARQUES, SEGUNDA TURMA, julgado em 01/04/2014, DJe 07/04/2014)”
b.3) Limitação da cláusula penal em matéria condominial – art. 1336, §1° do Código Civil. A Lei n° 4591/64 permitia que a multa fosse de até 20% e a disposição foi revogada pelo Código Civil. Assim, decidiu o STJ reiteradamente que para as taxas condominiais vencidas até 11/01/03, aplica-se a multa prevista na Convenção, de até 20%, já para as demais, o limite de 2% prevalece [2].
A questão que coloca, então, é a seguinte. Caso a cláusula penal esteja fixada pelas partes dentro dos limites da regra geral do artigo 412 do Código Civil e das limitações constantes em regras especiais pode o magistrado reduzir seu valor?
Essa é a questão que responderemos na nossa próxima coluna da Carta forense.
[1] “Ação revisional de “Instrumento Particular de Compra e Venda, Mútuo e Hipoteca” – Aplicação da Tabela Price que não implica anatocismo – Cobrança de juros que observou os limites legais – Atualização do saldo devedor feita adequadamente – Multa moratória, porém, que deve ser limitada a 2%, conforme o artigo 52, §1º do CDC – Recurso provido em parte.” (TJ/SP, Apelação nº 0105449-75.2006.8.26.0053 7ª Câmara de Direito Privado, Relator LUIS MARIO GALBETTI, j. 04.09.2013)
[2] “A multa por atraso prevista na convenção de condomínio, que tinha por limite legal máximo o percentual de 20% previsto no art. 12, parágrafo 3º, da Lei n. 4.591/64, vale para as prestações vencidas na vigência do diploma que lhe dava respaldo, sofrendo automática modificação, no entanto, a partir da revogação daquele teto pelo art. 1.336, parágrafo 1º, em relação às cotas vencidas sob a égide do Código Civil atual” (REsp 746.589/RS, Rel. Ministro ALDIR PASSARINHO JUNIOR, QUARTA TURMA, julgado em 15/08/2006).