A culpa e o fim da conjugalidade: diálogo entre o Código Civil brasileiro e o português

1. No sistema brasileiro
Em 14 de julho de 2010, com a Emenda Constitucional 66, o Direito de Família brasileiro passou por verdadeira revolução: o fim do debate sobre a culpa quando do fim da conjugalidade. O artigo 226, parágrafo 6º da CF passou a ter a seguinte redação: “O casamento civil pode ser dissolvido pelo divórcio”.

Após um debate apaixonado e feroz (destroçador de amizades e acirrador de inimizades), o Direito brasileiro se acomodou, e efetivamente já não há mais qualquer debate quanto à culpa de um ou ambos os cônjuges sobre o fim do casamento.

A separação judicial litigiosa desapareceu do sistema e se consolidou no sistema a percepção de que o casamento termina quando o afeto e a comunhão de vidas cessam. Assim, o divórcio não exige causa ou motivo. Basta que um ou ambos os cônjuges o desejem. Não há inquirição sobre os fatos que levaram à decisão. Tais fatos são irrelevantes para a solução da demanda, que, aliás, será procedente.

O divórcio é direito potestativo e irresistível. A separação judicial litigiosa não mais existe, logo, não há um locus de imputação de culpa pelo fim do casamento. A vantagem do novo sistema é clara: as mazelas humanas, as razões de insucesso afetivo, as idiossincrasias pessoais não vão aos autos e não servirão de acirramento de conflito nem de exposição inútil da intimidade daquele casal.

O sistema de divórcio, que também foi adotado na Espanha, é o chamado “divórcio a pedido”. Ao sistema, não há interesse no porquê ou porquês do divórcio.

Há algum aspecto negativo na opção de divórcio “a pedido”? Sim, pois para algum se retoma o velhíssimo sistema de repúdio que prevalece, ainda, no sistema islâmico, conforme informa Rolf Madaleno:

“(pode haver) o repúdio revogável e irrevogável. Ambas constituem ato unilateral do marido e colocam como pressupostos de validade: 1) a capacidade para repudiar; 2) efetiva intenção de repúdio; 3) possibilidade e emprego de fórmula usualmente aceita. Esta forma unilateral de vontade do esposo atua como causa material de desfazimento do vínculo conjugal e dispensa qualquer intervenção judicial, contrariamente ao sistema ocidental predominante, e que não confere ao marido a faculdade judicante de decidir sobre a sorte da sua mulher e de seu matrimônio e, portanto, completamente distanciado da ordem pública vigente em outras instituições jurídicas independentes do dogma religioso. Para a mulher, em contraponto às amplas faculdades de dissolução unilateral, outorgadas ao homem pelo repúdio, o direito muçulmano reserva o divórcio decretado pela autoridade judicial por descumprimento pelo esposo, das obrigações conjugais e cujas principais causas fazem relação ao dote e às obrigações alimentícias porventura desatendidas, denotando indisfarçável desequilíbrio de forças acostumadas a abafar o espaço social, familiar e jurídico da mulher, já presente pela simples desigualdade da sociedade alcorâmica recolher a poligamia masculina”.

Há de se lembrar que a faculdade de simplesmente se divorciar concedida a ambos os cônjuges em total condição de igualdade e sem qualquer distinção é absolutamente justa, pois não se pode imaginar que o casamento obrigue pessoas que não mais se amam ou, pior, que têm relação afetiva com terceiros a prosseguirem casados.

O casamento foi banalizado? Não, não foi, pois a banalização se dá quando um instituto permite, à entrada, pouca ou nenhuma reflexão. É o caso da compra do pão de queijo. A falta de formalidade na formação do negócio jurídico é perigosa, mas democrática.

A saída facilitada não é perigosa. Ela só permite ao cidadão optar pela entrada, com a certeza de poder sair. Simples assim.

Logo, a ausência de causa ou motivo para se pôr fim ao casamento foi extremamente salutar ao Direito brasileiro. O fim da separação judicial é verdadeira conquista civilizacional.

2. No sistema português
O sistema português sofreu profunda alteração em 2008, com a edição da Lei 61/2008. O artigo 1781 do Código Civil passou a ter a seguinte redação:

Artigo 1.781.

Ruptura do casamento

São fundamento do divórcio sem consentimento de um dos cônjuges:

a) A separação de facto por um ano consecutivo;

b) A alteração das faculdades mentais do outro cônjuge, quando dure há mais de um ano e, pela sua gravidade, comprometa a possibilidade de vida em comum;

c) A ausência, sem que do ausente haja notícias, por tempo não inferior a um ano;

d) Quaisquer outros factos que, independentemente da culpa dos cônjuges, mostrem a ruptura definitiva do casamento.

Note-se que o sistema português traz causas que devem ocorrer para que se possa pôr fim ao casamento. A causa deve ser revelada e provada. Cabe ao autor da demanda, em divórcio litigioso, indicar qual das alíneas é fundamento para conseguir a procedência do divórcio.

Mesmo porque o fundamento pode mudar os efeitos do divórcio. Apenas a título de exemplo, se o pedido for fundamentado na alínea “b” (alteração das faculdades mentais), o réu na ação de divórcio, sem necessidade de ação autônoma, pode pedir indenização por dano moral no próprio juízo de família, sob a forma de reconvenção. Nas demais alíneas, o direito à indenização só pode ser pedido em tribunal comum e em ação autônoma.

A reflexão interessante diz respeito à alínea “d”, em que se menciona a “ruptura definitiva do casamento”. Note-se que também a lei portuguesa expressamente determina que não se debate culpa. Deve haver prova de um dado objetivo: a ruptura. A violação dos deveres do casamento não é trazida ao debate, em tese.

Diz-se em tese, pois como se prova a ruptura definitiva do casamento? São exemplos disso a saída do lar conjugal sem intenção de retorno, a cessão das relações sexuais do casal, a infidelidade, a simples declaração de um dos cônjuges da vontade de não mais prosseguir casado, o réu que mal se defende do pedido do autor etc.

Há uma funcionalização dessa ruptura em que, na realidade, acaba-se se admitindo que qualquer razão, desde que comprovada, é aceita como causa do divórcio. Então resta uma pergunta: se a noção de ruptura definitiva é cada vez mais alargada, mais elástica, por que manter a causa e não aboli-la como fez o Direito brasileiro? Por que há um apego ao motivo ou causa para o divórcio?

Tenho uma percepção de que isso decorre da natureza jurídica do casamento no Direito português. O casamento, por força de lei, é um contrato, em clara adoção ao sistema francês. Esse é o teor do artigo 1.577:

“Casamento é o contrato celebrado entre duas pessoas que pretendem constituir família mediante uma plena comunhão de vida, nos termos das disposições deste Código”.

O casamento só pode ser contrato numa percepção histórica e totalmente temporal. Se houve um tempo em que contrato era, deixou de ser pela própria estrutura da família e sua releitura atual.

É um acordo que não é contrato, pois gera uma instituição: a família. Seus efeitos são totalmente estranhos aos contratos, pois o casamento, em si, não gera prestações aos cônjuges, e sim deveres. Os aspectos patrimoniais são os menos relevantes.

É por isso que no Brasil o divórcio é “a pedido”, independentemente de causa ou motivo. Em uma noção contratual, a resilição imotivada é mais complexa. Deve vir expressamente admitida em lei, sob pena da banalização do princípio pacta sunt servanda.

Eventualmente, com a evolução jurisprudencial portuguesa, a noção de “ruptura definitiva do casamento” pode se tornar tão ampla e abrangente que faça com que o divórcio só tenha motivos em aparência, bastando na realidade a vontade de não mais estar casado.

*Meus agradecimentos à doutora Sandra Passinhas, professora da Faculdade de Direito de Coimbra, pela possibilidade de aprender o sistema português.

Para você citar:

SIMÃO, José Fernando. A Culpa e o fim da conjugalidade: diálogo entre Código Civil brasileiro e o português. Consultor Jurídico, 29 jan. 2017.

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