Repensando a noção de pacto sucessório: de “lege ferenda”:

Divórcio e morte precisam produzir idênticos efeitos?

É bastante antiga a regra pela qual não pode ser objeto de contrato herança de pessoa viva. Atualmente, a regra vem reproduzida no art. 426 do CC. São vedados ou proibidos os chamados pactos sucessórios ou em bom latim, os pacta corvina[1]. Dispõe o artigo:

“Art. 426. Não pode ser objeto de contrato a herança de pessoa viva”.

A vedação aos pactos sucessórios tem diversas razões de ser.

A grande razão trazida pela doutrina é de cunho moral e seus efeitos perante a sociedade. É o chamado votum alicujus mortis. O contrato que transfere a herança de pessoa viva só produz efeitos após a morte daquele que tem o bem ou bens transferidos. Assim, desperta-se o desejo de morte ou de antecipação de morte, daquele de quem a herança se trata.

Um segundo motivo é a possível pressão a que se sujeitaria o herdeiro. Se ele puder, com o autor da herança ainda vivo, dispor da herança, em momento de dificuldade financeira momentânea estaria tentado a cedê-la onerosamente.

Há um outro motivo de ordem lógico-jurídica. Não há herança de pessoa viva. Simplesmente, antes da morte de certa pessoa existe o sujeito titular de um patrimônio. Herança pressupõe o fato jurídico morte. Se meu pai está vivo, herança não há. Há patrimônio apenas.

O que existe a impossibilidade de se doar aquilo que o doador não poderia dispor por testamento. É a chamada doação inoficiosa (art. 549 do CC). Então, não se cede o que ainda não existe. A redação é técnica. Não se fala em herança de pessoa viva, expressão que, por si contém uma contradição, pois herança pressupõe evento morte.

A repugnância que os pactos sucessórios geram permeou os Códigos Civis dos países que seguem o sistema da civil law, de matriz romano-germânica. Como exemplo, lembro a disposição do art. 458 do Código Civil italiano.

Contudo penso que a restrição contida no art. 426 do CC brasileiro precisa ser repensada para fins de direito de família. Há algum tempo, aprendi que no sistema português temos algumas regras que são extremamente salutares ao Direito de Família brasileiro e que passam pela noção de pacta corvina.

Há uma lógica que adota o sistema português com relação ao casamento e ao regimes de bens. O fim do casamento pela morte não pode gerar idênticos efeitos que o fim do casamento pelo divórcio. É verdade que morte ou divórcio se encontram no plano da eficácia do casamento, ou seja, ambos os institutos põe fim ao casamento com efeitos ex nunc (sem efeitos retroativos). No caso de invalidade, o fim do casamento terá eficácia ex tunc (retroativos).

No Brasil, a morte ou divórcio não alteram a situação patrimonial dos cônjuges. O regime adotado pelos cônjuges produz idênticos efeitos, quer seja para fins de partilha entre os cônjuges (divórcio) ou entre o sobrevivente e os herdeiros (morte).

Portugal tem duas regras em seu Código Civil que, de lege ferenda, seriam muito interessantes ao sistema brasileiro. O sistema português tem duas premissas: no caso de morte, respeita-se o regime escolhido em todos os seus efeitos. No caso de divórcio, há uma limitação dos efeitos do regime adotado.

A primeira serve para o divórcio e decorre do texto de lei. Em havendo casamento por comunhão universal de bens (comunhão geral em Portugal), no caso de divórcio a partilha se dá pelas regras da comunhão parcial (comunhão de adquiridos). Assim, vejamos o teor do artigo 1790 do CC português:

“Em caso de divórcio, nenhum dos cônjuges pode na partilha receber mais do que receberia se o casamento tivesse sido celebrado segundo o regime da comunhão de adquiridos”.

Se o casamento se desfez pelo divórcio, há uma redução da meação que só será composta pelos aquestos (bens adquiridos na constância do casamento) e nada mais.

A regra é fantástica, pois permite que pela comunhão universal de bens se vise à comunhão integral de vidas, mas em caso de falência do casamento, há aplicação de uma regra mais restritiva: comunhão apenas dos aquestos. Há uma alteração de eficácia do regime em caso de divórcio, que significará redução dos efeitos originalmente avençados.

A segunda nasce da vontade das partes e terá efeitos quando da morte. Por meio do pacto antenupcial, podem as partes dispor do seguinte:

“Art. 1.719. 1. É permitido aos esposados convencionar, para o caso de dissolução do casamento por morte de um dos cônjuges, quando haja descendentes comuns, que a partilha dos bens se faça segundo o regime da comunhão geral, seja qual for o regime adoptado”.

Assim, avençam os nubentes em pacto antenupcial que, quando da morte, o regime se converta em comunhão universal. É o caso de pessoas que se casam por separação de bens com temor de falência do casamento que seria seguido pelo divórcio e partilha.

Contudo, o divórcio não se verifica e o temor se revela descabido. Com a morte, o cônjuge sobrevivo passa a ter meação sobre todo o patrimônio do falecido. Há uma proteção evidente ao viúvo ou viúva. Há uma alteração de eficácia do regime em caso de morte, que significará ampliação dos efeitos originalmente avençados.

Se o Brasil acrescesse um parágrafo ao artigo 426 e admitisse a “conversão mortis causa do regime em razão de previsão do pacto antenupcial” os cônjuges teriam dupla faculdade: adotar um regime restritivo como forma de se proteger de eventual divórcio e garantir uma proteção ao viúvo ou viúva, que, em caso de morte do consorte, passariam a fazer jus à meação.

Fica a sugestão:

“Art. 426. Não pode ser objeto de contrato a herança de pessoa viva

Parágrafo único: Por meio de pacto antenupcial, os nubentes podem convencionar que em caso de dissolução do casamento por morte, a partilha se faça por qualquer dos regimes previstos no Código Civil, ainda que distinto daquele convencionado.”.


[1] Pactum é substantivo neutro da segunda declinação. No nominativo, pactum tem por plural pacta. Logo, em português é um erro falar-se em “a pacta corvina”. O correto é utilizar o artigo masculino no plural: os pacta corvina.

Para você citar:

SIMÃO, José Fernando. Repensando a noção de pacto sucessório: de ‘lege ferenda’: divórcio e morte precisam produzir efeitos idênticos?. Jornal Carta Forense, 02 fev. 2017.

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