O ano de 2005 foi sem dúvida um ano repleto de decisões judiciais interessantes, pois o Código Civil começa a receber a interpretação jurisprudencial e, portanto, tudo o que a doutrina escreveu começa a ser confirmado ou desmentido pelos Tribunais.
Num ano como este, poderíamos escrever em nossas colunas de novembro e dezembro sobre decisões inovadoras a respeito do Código Civil. Entretanto, as decisões serão objeto de artigos no início de 2006.
A reflexão que pretendemos fazer concerne o instituto da velha FIANÇA, mormente quando prestada como garantia em contrato de locação de imóvel urbano (L. 8245/91).
O instituto da fiança vem sofrendo sistematicamente ataques por parte dos Tribunais, notadamente o Superior Tribunal de Justiça, motivo de preocupação para os advogados e locadores.
A questão que não quer calar é a seguinte: a fiança locatícia sobreviverá ao novo Código Civil e a seus princípios, bem como aos princípios decorrentes do Direito Civil Constitucional? É exatamente esta nossa reflexão no presente artigo.
Já de início, observamos que a fiança é, em regra, um contrato gratuito pelo qual o fiador nada recebe para garantir o pagamento de dívida alheia. A dívida não lhe trará qualquer benefício, apesar o ônus de garantir eventual inadimplemento. Em razão de seu caráter gratuito, a lei determina que a interpretação da fiança dar-se-á restritivamente, e jamais de maneira a ampliar os deveres do fiador (CC, art. 819).
Sempre nos perguntamos (e também verbalizo esta inquietude com os nossos alunos) os motivos que levam determinada pessoa a concordar em ser fiador. Nunca me explicaram o porquê. Só podemos acreditar que se trata realmente de um favor que geralmente é feito entre pessoas de uma mesma família e decorre exclusivamente da CONFIANÇA. Da certeza de que o devedor honrará o compromisso assumido.
Em razão disto, quando do inadimplemento do devedor o fiador recebe com surpresa a notícia de que ele, geralmente pessoa honrada e cumpridora de seus deveres, também está devendo quantia vultosa.
Na fiança locatícia os fatos narrados são corriqueiros e se multiplicam aos milhares.
Os Tribunais, sensíveis à situação desoladora do fiador, já se posicionavam, antes mesmo da vigência do Código Civil de 2002, de maneira claramente favorável à redução desta responsabilidade (Haftung sem Schuld) dos fiadores de imóveis urbanos.
De início, já está pacificado o entendimento pelo qual o fiador apenas responde pelas dívidas do inquilino que surgirem no prazo de duração do contrato de locação. Em caso de prorrogação do contrato, o fiador está exonerado de qualquer responsabilidade, ainda que haja cláusula contratual prevendo a responsabilidade até a efetiva entrega de chaves:
– Na fiança, o garante só pode ser responsabilizado pelos valores previstos no contrato a que se vinculou, sendo irrelevante, na hipótese, para se delimitar a duração da garantia, cláusula contratual prevendo a obrigação do fiador até a entrega das chaves (Precedentes desta Corte) (REsp 697470 / SP ; RECURSO ESPECIAL 2004/0158470-1)
– O contrato de fiança deve ser interpretado restritivamente, pelo que é inadmissível a responsabilização do fiador por obrigações locativas resultantes de prorrogação do contrato de locação sem a anuência daquele, sendo irrelevante a existência de cláusula estendendo a obrigação fidejussória até a entrega das chaves (REsp 754329 / SP ; RECURSO ESPECIAL 2005/0088101-0)
Por outro lado, em ocorrendo ausência de vênia conjugal por parte do cônjuge do fiador, o Superior Tribunal de Justiça corretamente entende que a fiança é NULA como um todo e não há que se falar apenas em preservação de fiação do cônjuge que não anuiu:
– A ausência de consentimento da esposa em fiança prestada pelo marido invalida o ato por inteiro. Nula a garantia, portanto. Certo, ainda, que não se pode limitar o efeito dessa nulidade apenas à meação da mulher (REsp 631262 / MG ; RECURSO ESPECIAL 2004/0023956-0)
– O entendimento deste Superior Tribunal de Justiça é pacífico no sentido que a ausência da outorga uxória nulifica integralmente o pacto de fiança. O contrato de fiança não admite interpretação extensiva, consoante determinava o art. 1483 do Código Civil de 1916. Com base nessa premissa, inclinou-se a jurisprudência no sentido de que o fiador não responde pelos aditamentos ao contrato original a que não tenha anuído (REsp 619814 / RJ ; RECURSO ESPECIAL 2003/0238648-9)
– O Superior Tribunal de Justiça possui jurisprudência uniforme no sentido de que é nula a fiança prestada sem a necessária outorga uxória, não havendo como se considerá-la parcialmente eficaz para constranger a meação do cônjuge varão (AgRg no Ag 595895 / SP ; AGRAVO REGIMENTAL NO AGRAVO DE INSTRUMENTO 2004/0063468-0).
Mas o golpe fatal contra a fiança locatícia estava por vir. Quando menos se esperava, ocorreu a promulgação, em fevereiro de 2000, da emenda Constitucional nº 26 pela qual o direito à moradia passou a ser considerada direito social do cidadão, alterando-se o art. 6º da Carta Magna.
Com a emenda, julgados surgiram no sentido de que a norma em questão era meramente programática e não alterava em nada a possibilidade de penhora do bem de família do fiador, concluindo-se que “a inclusão da moradia entre esses direitos não implica em qualquer alteração à legislação infra-constitucional que regula a propriedade de bens imóveis” (2º TAC, Ap. s/ Rev. 801.745-00/7 – 6ª Câm. – Rel. Juiz SOUZA MOREIRA – J. 17.3.2004)
Entretanto, mesmo com a forte resistência dos locadores, não foi esta a interpretação que prevaleceu. Recentemente os Tribunais Superiores começaram a se manifestar com relação à impossibilidade de o fiador ter os benefícios decorrentes da impenhorabilidade do bem de família, nos termos da Lei 8.009/90. Em decisão monocrática pioneira, o Ministro Carlos Velloso considerou não recepcionado pelo sistema o artigo 3º, inciso VII da mencionada lei, a partir da vigência da Emenda 26, e, portanto, concluiu pela IMPENHORABILIDADE DO BEM DE FAMÍLIA DO FIADOR EM FIANÇA LOCATÍCIA (RE 352940/SP e RE 349.370/SP publicados em 13/05/2005).
Meses depois, também o Superior Tribunal de Justiça acolheu a tese da impenhorabilidade do bem de família:
– Com respaldo em recente julgado proferido pelo Pretório Excelso, é impenhorável bem de família pertencente a fiador em contrato de locação, porquanto o art. 3º, VII, da Lei nº 8.009/90 não foi recepcionado pelo art. 6º da Constituição Federal (redação dada pela Emenda Constitucional nº 26/2000) (REsp 631262 / MG; RECURSO ESPECIAL 2004/0023956-0)
Em, conclusão, a fiança locatícia está sangrando e prenunciamos que não sobreviverá! Os mais pessimistas dizem que sem ela estaremos diante do fim do mercado imobiliário, pois os locatários mais humildes dificilmente encontrarão outra forma de garantia e acabarão dormindo ao relento. Entretanto, estes pessimistas se esquecem que, se não fosse a interpretação restritiva de um contrato benéfico, quem acabaria dormindo ao relento seria o fiador, nas hipóteses de inadimplemento do inquilino!
Por fim, dizer que se ele assinou o contrato, o problema é dele (em termos jurídicos é a alegação do vetusto princípio pacta sunt servanda) é ignorar a realidade brasileira e demonstrar evidente insensibilidade.
Cabe a nós, portanto, pensarmos em novas formas de garantias, principalmente em novas modalidades de caução. Bem, mas isto já é assunto para outro momento.
Num ano como este, poderíamos escrever em nossas colunas de novembro e dezembro sobre decisões inovadoras a respeito do Código Civil. Entretanto, as decisões serão objeto de artigos no início de 2006.
A reflexão que pretendemos fazer concerne o instituto da velha FIANÇA, mormente quando prestada como garantia em contrato de locação de imóvel urbano (L. 8245/91).
O instituto da fiança vem sofrendo sistematicamente ataques por parte dos Tribunais, notadamente o Superior Tribunal de Justiça, motivo de preocupação para os advogados e locadores.
A questão que não quer calar é a seguinte: a fiança locatícia sobreviverá ao novo Código Civil e a seus princípios, bem como aos princípios decorrentes do Direito Civil Constitucional? É exatamente esta nossa reflexão no presente artigo.
Já de início, observamos que a fiança é, em regra, um contrato gratuito pelo qual o fiador nada recebe para garantir o pagamento de dívida alheia. A dívida não lhe trará qualquer benefício, apesar o ônus de garantir eventual inadimplemento. Em razão de seu caráter gratuito, a lei determina que a interpretação da fiança dar-se-á restritivamente, e jamais de maneira a ampliar os deveres do fiador (CC, art. 819).
Sempre nos perguntamos (e também verbalizo esta inquietude com os nossos alunos) os motivos que levam determinada pessoa a concordar em ser fiador. Nunca me explicaram o porquê. Só podemos acreditar que se trata realmente de um favor que geralmente é feito entre pessoas de uma mesma família e decorre exclusivamente da CONFIANÇA. Da certeza de que o devedor honrará o compromisso assumido.
Em razão disto, quando do inadimplemento do devedor o fiador recebe com surpresa a notícia de que ele, geralmente pessoa honrada e cumpridora de seus deveres, também está devendo quantia vultosa.
Na fiança locatícia os fatos narrados são corriqueiros e se multiplicam aos milhares.
Os Tribunais, sensíveis à situação desoladora do fiador, já se posicionavam, antes mesmo da vigência do Código Civil de 2002, de maneira claramente favorável à redução desta responsabilidade (Haftung sem Schuld) dos fiadores de imóveis urbanos.
De início, já está pacificado o entendimento pelo qual o fiador apenas responde pelas dívidas do inquilino que surgirem no prazo de duração do contrato de locação. Em caso de prorrogação do contrato, o fiador está exonerado de qualquer responsabilidade, ainda que haja cláusula contratual prevendo a responsabilidade até a efetiva entrega de chaves:
– Na fiança, o garante só pode ser responsabilizado pelos valores previstos no contrato a que se vinculou, sendo irrelevante, na hipótese, para se delimitar a duração da garantia, cláusula contratual prevendo a obrigação do fiador até a entrega das chaves (Precedentes desta Corte) (REsp 697470 / SP ; RECURSO ESPECIAL 2004/0158470-1)
– O contrato de fiança deve ser interpretado restritivamente, pelo que é inadmissível a responsabilização do fiador por obrigações locativas resultantes de prorrogação do contrato de locação sem a anuência daquele, sendo irrelevante a existência de cláusula estendendo a obrigação fidejussória até a entrega das chaves (REsp 754329 / SP ; RECURSO ESPECIAL 2005/0088101-0)
Por outro lado, em ocorrendo ausência de vênia conjugal por parte do cônjuge do fiador, o Superior Tribunal de Justiça corretamente entende que a fiança é NULA como um todo e não há que se falar apenas em preservação de fiação do cônjuge que não anuiu:
– A ausência de consentimento da esposa em fiança prestada pelo marido invalida o ato por inteiro. Nula a garantia, portanto. Certo, ainda, que não se pode limitar o efeito dessa nulidade apenas à meação da mulher (REsp 631262 / MG ; RECURSO ESPECIAL 2004/0023956-0)
– O entendimento deste Superior Tribunal de Justiça é pacífico no sentido que a ausência da outorga uxória nulifica integralmente o pacto de fiança. O contrato de fiança não admite interpretação extensiva, consoante determinava o art. 1483 do Código Civil de 1916. Com base nessa premissa, inclinou-se a jurisprudência no sentido de que o fiador não responde pelos aditamentos ao contrato original a que não tenha anuído (REsp 619814 / RJ ; RECURSO ESPECIAL 2003/0238648-9)
– O Superior Tribunal de Justiça possui jurisprudência uniforme no sentido de que é nula a fiança prestada sem a necessária outorga uxória, não havendo como se considerá-la parcialmente eficaz para constranger a meação do cônjuge varão (AgRg no Ag 595895 / SP ; AGRAVO REGIMENTAL NO AGRAVO DE INSTRUMENTO 2004/0063468-0).
Mas o golpe fatal contra a fiança locatícia estava por vir. Quando menos se esperava, ocorreu a promulgação, em fevereiro de 2000, da emenda Constitucional nº 26 pela qual o direito à moradia passou a ser considerada direito social do cidadão, alterando-se o art. 6º da Carta Magna.
Com a emenda, julgados surgiram no sentido de que a norma em questão era meramente programática e não alterava em nada a possibilidade de penhora do bem de família do fiador, concluindo-se que “a inclusão da moradia entre esses direitos não implica em qualquer alteração à legislação infra-constitucional que regula a propriedade de bens imóveis” (2º TAC, Ap. s/ Rev. 801.745-00/7 – 6ª Câm. – Rel. Juiz SOUZA MOREIRA – J. 17.3.2004)
Entretanto, mesmo com a forte resistência dos locadores, não foi esta a interpretação que prevaleceu. Recentemente os Tribunais Superiores começaram a se manifestar com relação à impossibilidade de o fiador ter os benefícios decorrentes da impenhorabilidade do bem de família, nos termos da Lei 8.009/90. Em decisão monocrática pioneira, o Ministro Carlos Velloso considerou não recepcionado pelo sistema o artigo 3º, inciso VII da mencionada lei, a partir da vigência da Emenda 26, e, portanto, concluiu pela IMPENHORABILIDADE DO BEM DE FAMÍLIA DO FIADOR EM FIANÇA LOCATÍCIA (RE 352940/SP e RE 349.370/SP publicados em 13/05/2005).
Meses depois, também o Superior Tribunal de Justiça acolheu a tese da impenhorabilidade do bem de família:
– Com respaldo em recente julgado proferido pelo Pretório Excelso, é impenhorável bem de família pertencente a fiador em contrato de locação, porquanto o art. 3º, VII, da Lei nº 8.009/90 não foi recepcionado pelo art. 6º da Constituição Federal (redação dada pela Emenda Constitucional nº 26/2000) (REsp 631262 / MG; RECURSO ESPECIAL 2004/0023956-0)
Em, conclusão, a fiança locatícia está sangrando e prenunciamos que não sobreviverá! Os mais pessimistas dizem que sem ela estaremos diante do fim do mercado imobiliário, pois os locatários mais humildes dificilmente encontrarão outra forma de garantia e acabarão dormindo ao relento. Entretanto, estes pessimistas se esquecem que, se não fosse a interpretação restritiva de um contrato benéfico, quem acabaria dormindo ao relento seria o fiador, nas hipóteses de inadimplemento do inquilino!
Por fim, dizer que se ele assinou o contrato, o problema é dele (em termos jurídicos é a alegação do vetusto princípio pacta sunt servanda) é ignorar a realidade brasileira e demonstrar evidente insensibilidade.
Cabe a nós, portanto, pensarmos em novas formas de garantias, principalmente em novas modalidades de caução. Bem, mas isto já é assunto para outro momento.