A hipoteca e bem de família: a garantia sobrevive

No último artigo da Carta Forense de 2005, cuidamos da garantia hipotecária e seus destinos nos novos tempos jurídicos em que vivemos.
Como se sabe, a hipoteca consiste em um direito real pelo qual o devedor ou um terceiro disponibilizam bem imóvel (ou assemelhado por força de lei) para a garantia de uma dívida.
Ao lado do penhor e da anticrese, é o mais utilizado dos direitos reais sobre coisa alheia. Não mencionamos aqui a propriedade fiduciária (CC, art. 1361) por se tratar de propriedade resolúvel na qual o devedor é mero depositário do bem o e o credor seu proprietário.
De larga utilização, mormente nas operações de mútuo bancário, a hipoteca sobreviveu no tempo, gozando de amplo prestígio. Diziam alguns que, após 1997, com a expressa previsão de alienação fiduciária de bens imóveis (Lei 9514/97), a hipoteca tenderia ao desaparecimento nas operações referentes ao Sistema Financeiro Imobiliário.
Isso não aconteceu. Curiosamente, apesar de a alienação transferir ao banco credor a propriedade do bem imóvel, com todas a vantagens decorrentes, a hipoteca continuou e continua a ser utilizada, apesar de gerar mero direito real sobre coisa alheia.
A grande vantagem da alienação sobre a hipoteca é que, em ocorrendo falência do devedor, o bem fiduciariamente alienado não entra na massa falida, pois já pertence ao credor. Entretanto, o bem hipotecado fará parte da massa, ainda que a preferência do credor hipotecário exista.
Não podemos nos esquecer, entretanto que, com a nova lei de falências, (11.101/05), que entrou em vigor em junho de 2005, após vacatio de 120 dias, os credores hipotecários foram enormemente beneficiados, pois créditos com garantia real (hipoteca, penhor) encontram-se em segundo lugar na classificação prevista no artigo 83, perdendo apenas para os créditos trabalhistas até 150 salários mínimos e os decorrentes de acidente do trabalho (art. 83, I).
Assim, o crédito tributário não terá mais preferência sobre aquele com garantia real. Aparentemente, sucesso dos Bancos, grandes beneficiados com a mudança na classificação. Isso significou tranqüilidade aos credores hipotecários? Aparentemente sim, mas de fato….
Em breve digressão histórica, voltamos ao ano de 1990, em que ocorreu a promulgação da Lei 8.009/90. Surge a proteção infraconstitucional ao bem de família, como decorrência direta do princípio da dignidade humana (Constituição Federal de 1988, art. 1º, III). É a garantia de um teto para o devedor e sua família, não importando a espécie de dívida ou seu montante.
O próprio diploma traz em seu artigo 3º algumas exceções em que não se pode alegar bem de família. Interessa-nos o inciso V que dispõe:
“V – para execução de hipoteca sobre o imóvel oferecido como garantia real pelo casal ou pela entidade familiar”.
Previa a lei que se o casal ou entidade familiar oferecesse o bem em hipoteca, voluntariamente, não poderia, posteriormente, alegar bem de família. Ocorreria renúncia ao benefício legal, e, portanto, o bem passaria a ser penhorável. A hipótese pode parecer lógica aos olhos de alguém que imagina uma situação de igualdade absoluta dos contratantes em que um contrato paritário é celebrado.
Também pode parecer lógica, se imaginarmos que se trata de direito sujeito a simples renúncia da parte beneficiada.
Ocorre que as duas premissas são absolutamente falsas. Igualdade na relação creditória é algo praticamente fictício, não passando de noção superada há mais de 100 anos. Em regra, o credor hipersuficiente (instituições bancárias, por excelência), não deixam o devedor em situação de igualdade, mas, pelo contrário, em situação de evidente dependência e necessidade.
A renúncia, por si só, fere princípios básicos garantidos na Constituição Federal. Dentre eles o tão festejado direito à moradia (art. 6º de acordo com a emenda 26) que passa a ser considerado direito fundamental a partir de fevereiro de 2000.
Assim, razão não há para se considerar INCÓLUME a hipoteca concedida “livremente” pela família ou entidade familiar. Necessária será a análise do caso concreto.
Professor JOSÉ MARIA TREPAT CASES, no início da década de 1990, preconizava a todos nós, jovens ingressos nos bancos da Faculdade de Direito, que a hipoteca estava com seus dias também contados. Não sairia incólume à questão do bem de família. E quando objetávamos o mestre dizendo que se tratava de exceção expressa, ele profetizava o tempo demonstrará que estou com a razão, pois em muitos casos, a hipoteca fere princípios éticos e jurídicos.
Suas palavras ainda ecoam em nossos ouvidos, tantos anos depois. Como verdadeira profecia que se realiza, nossos Tribunais iniciaram um processo de conhecimento do direito civil a luz dos princípios constitucionais, e a hipoteca bancária tem sofrido fortes e emblemáticas derrotas. Vejamos duas ementas sobre o tema:
“I. Ainda que dado em garantia de empréstimo concedido a pessoa jurídica, é impenhorável o imóvel de sócio se ele constitui bem de família, porquanto a regra protetiva, de ordem pública, aliada à personalidade jurídica própria da empresa, não admite presumir que o mútuo tenha sido concedido em benefício da pessoa física, situação diversa da hipoteca prevista na exceção consignada no inciso V, do art. 3º, da Lei n. 8.009/90.” REsp 302186 / RJ ; RECURSO ESPECIAL 2001/0010240-9, Ministro BARROS MONTEIRO, QUARTA TURMA, 11/12/2001, DJ 21.02.2005 p. 182)
“A exceção à impenhorabilidade prevista no art. 3º, inciso V, da Lei n. 8.009/90, não se aplica à hipótese em que a hipoteca foi dada para garantia de empréstimo contraído pela empresa, da qual é sócio o titular do bem, onde reside sua família.
II. Inexistência, na espécie, de situação em que a garantia hipotecária foi constituída em benefício da família, e, por isso mesmo, suscetível de penhora, nos termos do referenciado inciso V”. (REsp 302.281/RJ, Rel. Ministro BARROS MONTEIRO, Rel. p/ Acórdão Ministro ALDIR PASSARINHO JUNIOR, QUARTA TURMA, julgado em 04.09.2001, DJ 22.03.2004, p. 310)
Em ambos os julgados, defendem os Ministros do Superior Tribunal de Justiça que as exceções contidas no artigo 3º da Lei 8009/90 devem ser interpretadas restritivamente e não extensivamente. Poéticas são as palavras do Ministro Aldir Passarinho no recurso cuja ementa foi supra-transcrita:
“Penso que a hipótese descrita no inciso V refere-se ao comum dos casos, ou seja, aqueles em que os devedores constituíram a hipoteca como garantia da própria dívida, portanto em benefício direito deles mesmos e não de terceiros. A pessoa jurídica, o diz o art. 20 do Código Civil, seja ela familiar ou não, não se confunde com a pessoa física dos sócios que detém as suas quotas sociais.
É certo que em situações excepcionais, a doutrina e a jurisprudência construíram a tese do “disregard”, pela qual se desconsidera a personalidade da empresa para confundi-la com a do sócio, coibindo-se a fraude. Porém, na espécie em comento, seria uma forma de “disregard” ao contrário, ou seja, o imóvel do sócio é que teria de ser tomado como sendo da empresa, para, assim, responder pelas dívidas desta. Mas e o fato de se achar ele ocupado pelo sócio e sua família, como fica? Então, estariam, na verdade, a habitar algo que não é seu, como ocupantes de um bem supostamente da pessoa jurídica, apesar de ocupado e registrado em nome do sócio. Isso é possível? Creio que não”
Assim, em resumo, entendem os novos julgados os Superior Tribunal de Justiça que:
– Se o bem foi dado em hipoteca para garantir dívida do devedor ou de sua família, a hipoteca produz efeitos e se aplica a exceção contida no inciso V do artigo 3º da Lei 8.009/90.
– Se o bem do sócio foi dado em hipoteca para garantir dívida de pessoa jurídica da qual é sócio, e geralmente em situação de renegociação em evidente desvantagem para o devedor ou garante, a hipoteca não resiste, aplicando-se a proteção do bem de família sendo o bem impenhorável.
São os novos tempos. Os novos princípios que chegam para ficar. O direito civil não pode ser lido fora das luzes que emanam da Constituição Federal.
Que o ano de 2006 seja repleto de alegria e sucesso a todos nossos leitores! Saúde e paz. Feliz natal e próspero ano novo!

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