Em nossa última coluna da Carta Forense analisávamos as decisões sobre união estável compiladas pela ferramenta “Jurisprudência em Teses” do STJ.
Falei sobre três questões: a desnecessidade de se morar sob o mesmo teto para a configuração da união estável, a competência das varas de família para julgamento de processos relativos à união de pessoas do mesmo sexo e a possibilidade de os separados de fato constituírem união estável.
Algumas questões interessantes e complexas merecem reflexão.
1 – Na união estável de pessoa maior de setenta anos (art. 1.641, II, do CC/02), impõe-se o regime da separação obrigatória, sendo possível a partilha de bens adquiridos na constância da relação, desde que comprovado
o esforço comum.
Como se sabe, um dos princípios que rege o regime de bens é o da autonomia privada em que cônjuges (por meio de pacto antenupcial) e companheiros (por meio de contrato escrito) podem eleger regime que não o da comunhão parcial (que o regime legal ou supletivo para o casamento – art. 1640 do CC – e para união estável – art. 1725 do CC).
Contudo, na hipótese de casamento, caso um ou ambos os nubentes tenha 70 anos ou mais, não há possibilidade de escolha do regime: este será de separação obrigatória (art. 1.641, II do CC).
Duas questões precisam ser debatidas: i) a regra prevista para o casamento se aplica à união estável? ii) em se aplicando, a Súmula 377 do STF terá incidência?
A questão, à luz da hermenêutica, se resolve pela máxima segundo a qual a exceção não comporta ampliação ou extensão. Se a limitação da autonomia privada se aplica ao casamento, a exceção não deveria ser ampliada para atingir a união estável dos maiores de 70 anos.
Contudo, o STJ firmou entendimento contrário sob o seguinte fundamento: o casamento não pode receber um tratamento pior que o da união estável, afinal o objetivo do preceito constitucional é facilitar a conversão da união estável em casamento (art. 226, §3º da CF):
“não parece razoável imaginar que, a pretexto de se regular a união entre pessoas não casadas, o arcabouço legislativo acabou por estabelecer mais direitos aos conviventes em união estável (instituto menor) que aos cônjuges” (REsp 646.259⁄RS, Rel. Ministro LUIS FELIPE SALOMÃO)”
Assim, as limitações do casamento se estendem à união estável conforme entendimento consolidado do STJ
Por outro lado, o STJ, mesmo adotando o regime da separação obrigatória de bens para os maiores de 70 anos, prossegue aplicando a Súmula 377 do STF[1] que prevê a comunicação dos aquestos, ou seja, comunhão dos bens onerosamente na constância da união.
Em suma, a união estável e o casamento de septuagenários seguem regras idênticas em matéria de regime de bens[2].
2 – Não há possibilidade de se pleitear indenização por serviços domésticos prestados com o fim do casamento ou da união estável, tampouco com o cessar do concubinato, sob pena de se cometer grave discriminação frente ao casamento, que tem primazia constitucional de tratamento.
A cobrança de serviços prestados ao fim da união estável (à época concubinato puro) remonta aos primórdios da proteção da família até então chamada de ilegítima, pois não advinha do casamento.
Era forma de se garantir um mínimo patrimonial à mulher ao fim de relações longevas em que todo o patrimônio era adquirido pelo companheiro. Só fazia sentido em um tempo em que não havia proteção aos modelos familiares que não o casamento. Com a previsão constitucional da proteção da família advinda da união estável, não há qualquer base legal para se conceder indenização ao fim da relação.
A admissão de indenização ao fim da conjugalidade, na atualidade, é verdadeiro desprestígio ou diminuição do status protetivo das diversas famílias
Ainda, é de se ressaltar que a situação dos concubinos, pessoas impedidas de se casar (art. 1.727 do CC)[3] é regida pelo Direito das Obrigações, pois por vedação expressa de lei não há formação de núcleo familiar. Efetivamente, ao concubino caberá a partilha dos bens adquiridos com esforço comum[4].
Esforço comum pressupõe contribuição direta para a aquisição do bem e deve ser provado por quem o alega.
Em síntese o pensamento do STJ sobre a questão e que se revela totalmente acertado é o seguinte:
“Inviável a concessão de indenização à concubina, que mantivera relacionamento com homem casado, uma vez que tal providência eleva o concubinato a nível de proteção mais sofisticado que o existente no casamento e na união estável, tendo em vista que nessas uniões não se há falar em indenização por serviços domésticos prestados, porque, verdadeiramente, de serviços domésticos não se cogita, senão de uma contribuição mútua para o bom funcionamento do lar, cujos benefícios ambos experimentam ainda na constância da união. Na verdade, conceder a indigitada indenização consubstanciaria um atalho para se atingir os bens da família legítima, providência rechaçada por doutrina e jurisprudência”[5].
3 – Comprovada a existência de união homoafetiva, é de se reconhecer o direito do companheiro sobrevivente à meação dos bens adquiridos a título oneroso ao longo do relacionamento.
O debate aqui é bastante restrito. Com a decisão do STF na ADI 4.277/DF e ADPF 132/RJ em maio de 2011, dúvida não há que à união estável homoafetiva aplicam-se todas as regras da heterossexual. Logo, dizer que se trata de família é simplesmente cumprir o que o STF já decidiu.
Em sendo união estável, aplicam-se os artigos 1723 a 1727 do CC, e pelo artigo 1725 prevalece o regime de comunhão parcial para os companheiros, salvo existência de contrato escrito.
Em suma, os bens adquiridos onerosamente na constância da união estável são bens comuns (art. 1.660, I do CC).
A única questão que poderia surgir seria a da necessidade de prova do esforço comum. Tal questão não tem qualquer cabimento, pois tanto no casamento quanto na união estável, o regime de comunhão parcial não exige esforço comum para que nasça a meação. Basta a aquisição a título oneroso[6].
Logo, se a questão não se coloca para o casamento, razão não existe para se colocar em se tratando de união estável. Assim, não é a jurisprudência remansosa do STJ que dispensa prova do esforço comum, mas sim o próprio Código Civil.
[1]. Em 2015 o STJ pacificou o entendimento da necessidade de prova do esforço comum que não é mais presumido
[2]. Por todos: (EREsp 1171820/PR, Rel. Ministro RAUL ARAÚJO, SEGUNDA SEÇÃO, julgado em 26/08/2015, DJe 21/09/2015
[3]. O homem casado e sua amante, por exemplo.
[4]. Aplicação da velhíssima Súmula 380 do STF.
[5]. Por todos: (AgRg no AREsp 249.761/RS, Rel. Ministro LUIS FELIPE SALOMÃO, QUARTA TURMA, julgado em 28/05/2013, DJe 03/06/2013
[6]. EDcl no REsp 633.713/RS, Rel. Ministro RICARDO VILLAS BÔAS CUEVA, TERCEIRA TURMA, julgado em 11/02/2014, DJe 28/02/2014