Em notícia recente veiculada pela internet e que teve grande repercussão nas redes sociais, o Juiz de Direito da Comarca de São Carlos (interior de São Paulo, o magistrado Caio Cesar Melluso, condenou o tio a pagar alimentos ao sobrinho[1].
A decisão circulou pela internet (nomes das partes ocultos, logo se respeitou o anonimato) e tive acesso a seu inteiro teor. O pai do autor da ação fora condenado a pagar ao filho em 2011 a importância de 2 salários mínimos, valor esse reduzido para 1 salário mínimo, posteriormente, mais “participação em comissões”.
Segundo o autor, teria ele sido vítima de abandono afetivo por parte do pai e a sua avó paterna, idosa e doente, não poderia arcar com alimentos.
Há uma outra questão que a sentença cuida de salientar: “o autor padece de síndrome grave e limitante”, “tem crises emocionais quando está em ambientes estranhos, não controlados, o que torna evidentemente inadequada sua presença em audiência”.
Sobre os alimentos devidos entre parentes temos o seguinte:
“Art. 1.696. O direito à prestação de alimentos é recíproco entre pais e filhos, e extensivo a todos os ascendentes, recaindo a obrigação nos mais próximos em grau, uns em falta de outros”.
Não havendo ascendentes ou não podendo estes pagar alimentos, o Código Civil dispõe:
“Art. 1.697. Na falta dos ascendentes cabe a obrigação aos descendentes, guardada a ordem de sucessão e, faltando estes, aos irmãos, assim germanos como unilaterais”.
A questão efetivamente importante dizia respeito à preliminar de ilegitimidade de parte arguida pelo tio na qualidade de colateral se terceiro grau. Isso porque a lei é clara: a obrigação alimentar, na linha colateral, somente se estabelece entre os irmãos, colaterais de segundo grau, na falta de ascendentes e descendentes.
Três são os argumentos utilizados na sentença para se condenar o tio a pagar alimentos para o sobrinho:
Há relação sucessória entre o tio e o sobrinho, logo quem tem os bônus deve ter os ônus (invocação dos arts. 1829, IV e 1839);
Os artigos 1591 e 1592 que dão o conceito de parentesco devem ser lidos conjuntamente com o art. 1694 e esse último dispositivo não limita o dever de prestar alimentos ao colateral de segundo grau
Princípio da dignidade da pessoa humana (controle de constitucionalidade difuso ou interpretação conforme a Constituição)
Passo a demonstrar que todos os argumentos invocados são insuficientes para se chegar à condenação do tio no caso concreto. Trata-se de decisão proferida por magistrado que se condoeu das dificuldades do autor e por meio do Direito Civil resolveu fazer garantir auxílio que é próprio da previdência social ou dos programas de concessão de renda aos necessitados (bolsa família, por exemplo).
I – Alimentos e vocação hereditária.
Indaga-se existe alguma relação entre direito das sucessões e pagamento da prestação alimentar? A resposta se divide por partes.
Quando os ascendentes são devedores de alimentos a resposta é negativa. Isso porque em matéria sucessória os ascendentes de grau mais próximo excluem os de grau mais remoto e a partilha na classe dos ascendentes se dá por linhas (art. 1836, § 2º). Em matéria alimentar os ascendentes de grau mais remoto (mesmo não sendo herdeiros) podem complementar os alimentos fixados contra aqueles de grau mais próximo ou mesmo paga-los integralmente e a divisão desta prestação não se dá em linhas (materna e paterna), mas sim de acordo com a possibilidade dos ascendentes.
Quanto aos descendentes, que são os primeiros a suceder (art. 1829, I), em regra os de grau mais próximo (filhos) excluem os de grau mais remoto (netos) e a partilha se dá em regra por cabeça (quinhão igual a cada descendente) ou em havendo diversidade de graus (filhos concorrendo com netos – filhos de um filho pré-morto) a partilha ocorre por estirpe com relação aos netos, bisneto etc. Já quanto aos alimentos os descendentes só são devedores na ausência de ascendentes (ou se esses não puderem pagar os alimentos) e ainda que a lei determine o pagamento de alimentos aos descendentes “guardada a ordem de sucessão”, só faz para determinar que parente de grau mais próximo exclui o mais remoto. Não considera, por exemplo, que o neto do credor (que herdaria por representação) paga mais ou menos alimentos que paga o filho do credor (que herdaria por direito próprio).
Quanto aos colaterais, o Código Civil é claro: os colaterais de terceiro grau (tios do morto), só herdam se o falecido não deixou nenhum irmão (colateral de segundo grau) e nenhum sobrinho. A existência de colateral de segundo grau ou mesmo de sobrinhos afasta o tio do morto da sucessão (art. 1843 do CC). Ainda, os irmãos bilaterais herdam o dobro do que herdam os unilaterais (art. 1841). Em matéria alimentar, nenhuma dessas regras é considerada: não há distinção entre os irmãos e tanto os bilaterais quanto os unilaterais são devedores.
Em suma, não há qualquer relação entre Direito das Sucessões (de cunho eminentemente patrimonial) e os Alimentos (cunho existencial). Aliás, em parentesco não se discutem ônus e bônus. Essa correlação não existe. Busca-se, por meio de argumento frágil, justificar a decisão ao caso concreto.
Os bônus são remotíssimos, mas o ônus atual. Nenhuma relação de família se pauta pela lógica de ônus e bônus. Há desequilíbrio em todas as relações de Direito Civil. O doador tem ônus, e o donatário, bônus, logo a doação fere a Constituição? O locatário tem proteção garantida por lei, e o locador, não, e os bônus geram ônus? E assim os exemplos se multiplicam.
II – Leitura conjunta dos artigos 1591, 1592 e 1694
do Código Civil.
Efetivamente os artigos 1591 e 1592 ao enunciarem os parentes em linha reta e colateral não limitam os graus para linha reta (descendentes e ascendentes), mas limitam para a linha colateral (até quarto grau). Tais dispositivos apenas informam quem são os parentes em linha reta e em linha colateral.
Efetivamente o art. 1694 prevê que os parentes podem pedir alimentos entre si e não faz a limitação de graus, nem a ordem de se pedir alimentos.
Contudo, daí a se concluir que porque o artigo 1694 não menciona quais parentes devem alimentos, todos devem é argumento sem sustentação. Os artigos 1696 e 1697 explicitam o alcance do art. 1694: quem deve e em que ordem deve. Se o argumento for levado a sério, o artigo 1694 não indica a ordem em que se estabelecem os devedores de alimentos. Logo, mesmo contra o texto do art. 1697, por ausência de previsão no 1694, os descendentes pagariam antes dos ascendentes? Ainda, os irmãos seriam os primeiros a pagar alimentos, pois o 1694 não indica uma ordem entre os parentes?
O que se percebe é que o Código Civil de maneira lógica enuncia quem são os parentes (arts. 1591 e 1592 do CC), depois indica quem soa os devedores de alimentos (art. 1694) e por fim estabelece uma ordem entre os parentes (arts. 1696 e 1697).
III – A dignidade da pessoa humana ou como diria Cícero, “o tempora, o mores”.
A tendência atual é a violência contra o texto de lei por meio de invocação do princípio da dignidade da pessoa humana. O princípio que se esvaziou pelo seu uso leviano, seja pela utilização pouco técnica da doutrina, seja pelo uso corrente e sem preenchimento adequado pelos julgados, é a panaceia para todos os males.
A decisão é perigosa, pois nega vigência ao texto expresso do Código Civil invocando um ditame constitucional. Levado ao extremo o princípio constitucional da solidariedade poderia se concluir que toda a pessoa que pode deve pagar alimentos a quem precisa, pois, afinal, não se pode deixar um semelhante em situação de necessidade. A solidariedade se estenderia aos vínculos mais tênues: vizinhos, conhecidos, colegas de clube ou mesmo aos desconhecidos. Solidariedade contra legem não é solidariedade e sim arbitrariedade.
Entendo a situação do magistrado. Vendo uma pessoa que necessita de alimentos desamparada, o magistrado condoído se vale do que tem para não deixar um ser humano à míngua. É uma postura humanitária e com as melhores intenções. Frise-se que o autor da ação tem Síndrome de Asperger, o que comoveu enormemente o magistrado.
Contudo, o Direito Civil não é Previdência Social e não resolve os dramas de uma país empobrecido em que o Estado não garante um mínimo a seus cidadãos, seja em relação à saúde, seja em relação à educação, seja em relação aos alimentos.
Concluo dizendo óbvio: “a lei é a reserva mínima de segurança jurídica”. Ruim a regra do Código Civil pela qual tios não devem alimentos aos sobrinhos? Mude-se a lei para contemplar essa situação.
O desrespeito ao texto do Código Civil, ainda que por uma causa nobre, abre espaço para afronta a direitos e garantias em situações não tão nobres. Historicamente, em razão de “causas nobres” verdadeiras barbáries foram perpetradas. A lei é que serve de barreira mínima para que isso não se repita.
[1]. Processo 1007246-25.2016.8.26.0566