Conforme expliquei em nossa última coluna da Carta Forense, as premissas do legislador de 2002 para o sistema sucessório atual são completamente distintas daquelas adotadas pelo legislador anterior.
Demonstrei também o “ressentimento” da doutrina e sua incompreensão diante de regras pouco claras não só quanto à sua razão de ser, bem como e principalmente quanto à sua aplicação. Agora, cabe refletir a respeito das premissas para uma “possível” e “lógica” alteração das regras da sucessão legítima.
Para a alteração a ser proposta pelo IBDFAM elaborei um simples questionário que foi respondido pela Diretoria Nacional do instituto em 2007. As questões são as seguintes:
1. Cônjuge e companheiro devem ter tratamento idêntico?
2. Cônjuge ou companheiro devem continuar concorrendo com ascendentes e descendentes?
3. Caso a resposta anterior seja afirmativa, deve importar o regime de bens? Sobre quais bens haveria a concorrência?
4. Deve ser mantida ou estendida a reserva legal de ¼ ao cônjuge na concorrência com descendente comum?
5. Devemos manter o cônjuge como herdeiro necessário?
6. Manteremos as diferenças quando houver concorrência com descendentes comuns ou com exclusivos (1790, I e II) no tocante ao companheiro?
7. Manteremos a diferença entre bens adquiridos ou não a título oneroso para fins de sucessão do companheiro ou do cônjuge?
8. O direito real de habitação deve ser a termo (vitalício) ou sob condição (se não constituir novo casamento ou união)?
9. Estenderemos o direito de habitação ao companheiro?
São essas nove perguntas que ensejam as premissas para a reforma da sucessão legítima e sobre as quais passo a refletir nesse momento.
1. Cônjuge e companheiro devem ter tratamento sucessório idêntico?
A resposta é afirmativa sobre qualquer ponto de vista que se analise. Explico. Sobre o enfoque constitucional, o Supremo Tribunal Federal já se pronunciou que a Constituição não traz um rol taxativo de família, mas apenas as exemplifica, e que todas elas merecem proteção (cf. ADPF 132/RJ). Tratar a família que nasce da união estável como uma família de segunda classe, com menos proteção que a nascida do casamento revela descompasso com o momento histórico em que vivemos.
Ademais, o tratamento era igualitário no sistema do Código Civil de 1916 e das Leis da União estável, razão pela qual o retrocesso representado pelo artigo 1790 do Código Civil gera perplexidade no intérprete. Esta nova sistemática impõe verdadeiro retrocesso aos companheiros o que, inclusive, gerou e gera debates quanto à sua constitucionalidade.
Ademais, a solução, ainda que não fosse juridicamente questionável revela-se preconceituosa quanto às consequências. Parte da equivocada premissa pela qual a lei pretende que as pessoas se casem para contar com uma maior proteção, porque a união estável não merece igual proteção.
Essa solução de equiparação para todos os efeitos sucessórios é importante passo na longa caminhada de superação do modelo único de família e desestigmatização da união estável como forma de constituição de família. Mais que isso, é a superação da noção de concubinato.
A revogação do art. 1790 deve ocorrer e a reforma dos art. 1.829 e seguintes é imprescindível para igualdade de direitos sucessórios de cônjuges e companheiros.
Agora, o tratamento idêntico passa por duas outras questões que respondo oportunamente: 1) cônjuge e companheiro serão herdeiros necessários? 2) cônjuge e companheiro herdarão todos os bens ou apenas os adquiridos onerosamente no curso da união ou casamento.
2. Cônjuge ou companheiro devem continuar concorrendo com ascendentes e descendentes?
Para se responder a pergunta, deve-se compreender que a ordem de vocação hereditária traz uma presunção legal de afetividade. Na realidade, se o de cujus quisesse, poderia ter feito um testamento indicando o destina de seus bens. Se não o fez, a lei presume sua vontade e esta é a ordem de vocação hereditária.
Isso serve para responder indagações do tipo: por que os sobrinhos do falecido nada herdam se este tiver filhos? Ora, porque a lei presume que, numa situação de normalidade, a pessoa dedica mais carinho e afeto a seu filho do que a seu sobrinho e, portanto, deseja que seus bens sejam transmitidos ao primeiro.
Da mesma forma, por que na hipótese em que a pessoa falece deixando seu filho vivo e também seu pai, a lei determina que a herança vá para o filho? Porque a lei presume que, em uma situação de normalidade, a pessoa dedica mais carinho e afeto a seu filho do que a seu pai e, portanto, tem como vontade presumida que seus bens sejam para ele transmitidos.
Com essa presunção evidente, cria-se a ordem de vocação hereditária. Se os filhos dão continuidade à estirpe dos pais, nada mais justo que sejam eles os primeiros a receber sua herança.
Por que cônjuge e companheiro passaram a concorrer com descendentes e ascendentes?
a) Concorrência com ascendentes do falecido
Quanto aos ascendentes a resposta parece ser mais fácil. Quando a pessoa se casa ou se une e inicia um novo núcleo familiar, dividindo alegrias e tristezas e partilhando esforços para a construção de um patrimônio, nada mais justo que quando da morte de um deles, o outro herde bens, ainda que os ascendentes do de cujus estejam vivos. Os ascendentes (por mais afeto que se nutra por eles) representam o passado da pessoa e seu cônjuge ou companheiro o presente. A concorrência não agride e não tem gerado críticas e, neste ponto, não há razão para ser repensada.
b) Concorrência com descendentes do falecido
A questão se complica neste ponto. Se os ascendentes são uma representação do passado, das origens, os descendentes são o futuro. A concorrência causa, então, estranheza. Não seria melhor suprimi-la para que todos os bens do falecido fossem destinados aos descendentes?
Ocorre que se a supressão ocorrer, o espírito assistencial do Código Civil, que suprimiu o usufruto vidual, para garantir a participação de cônjuge e companheiro, maior e mais efetiva, na herança, ficaria mortalmente abalado. Pior. A simples supressão da concorrência com os descendentes os deixaria em situação pior que a vivida no Código Civil de 1916, pois aquele Código garantia um mínimo existencial por meio do usufruto vidual. A “solução” seria frontalmente agressiva ao princípio do patrimônio mínimo preconizado por Luiz Edson Fachin e poderia conduzir o cônjuge ou companheiro supérstite à miserabilidade.
A partir disto, seguem duas possíveis sugestões: o retorno do usufruto vidual ao sistema (com todas as críticas que sofria no passado) ou a manutenção da concorrência sucessória. Tendo em vista o insucesso do usufruto, a mim parece que a solução é manter a situação da concorrência como regra. Depois farei sugestão para abrandá-la, conforme se verá na próxima coluna da Carta Forense.