No mês de março passado, em aula na Escola da Magistratura de São Paulo, atendendo ao gentil convite dos Desembargadores Rulli Junior e Benedito Silvério, explicava a responsabilidade civil do fornecedor quanto ao fato e quanto ao vício do produto a uma seleta e interessada plateia.
O tema não é novo para mim, pois desde a elaboração de minha dissertação de mestrado no ano de 2002, posteriormente transformada em livro pela Editora Atlas (Vícios do Produto no novo CC e no CDC), pesquiso o assunto.
O CDC optou por dividir a disciplina da responsabilidade em duas sessões: fato do produto e do serviço (arts. 12 a 17) e vícios do produto e do serviço (arts. 18 a 25). Algumas notam ajudam a esclarecer a diferença dos institutos.
Com relação aos vícios, sob a égide do Código de Defesa do Consumidor, os efeitos seriam no âmbito interno da coisa, diferentemente dos defeitos, cujos efeitos extrapolam esse âmbito, porquanto ponham em risco a incolumidade física e psíquica do consumidor. Quando trata dos vícios, o Código de Defesa do Consumidor pretende proteger exclusivamente a esfera econômica do consumidor, e por isso permite a troca do produto, por exemplo, por outro em perfeitas condições de uso. Ao tratar do defeito (sob a rubrica “fato”), o Código de Defesa do Consumidor preocupa-se com possíveis danos à integridade física e moral do consumidor e com formas de repará-los em caso de lesão a esses bens.
Assim, o defeito do produto é considerado vício por insegurança (atinge o consumidor ou lhe causa prejuízos) e o vício do produto cujo efeito é no âmbito interno do bem é chamado de vício por inadequação.
Exemplos põem fim a eventuais dúvidas. Determinado consumidor adquire um carro com problemas no freio. Saindo da concessionária, em razão do problema, o comprador do veículo bate o carro e causa danos a si ou a terceiros. Estamos diante de defeito ou vício por insegurança, pois os efeitos extrapolam o âmbito interno do produto. A solução se encontra nos arts 12 e seguintes do CDC.
Se, por outro lado, o mesmo consumidor, assim que sai da concessionária, percebe o problema, e, vagarosamente, retorna à concessionária, não sofrendo qualquer dano, nota-se que o carro é impróprio ao uso a que se destina. Estamos diante de vício por inadequação previsto nos artigos 18 e seguintes do CDC.
Nesse sentido, ocorrendo defeito a única saída é que o consumidor pleiteie a indenização no prazo prescricional de 5 anos, contado a partir do conhecimento do dano e de sua autoria (CDC, art. 27).
Em se tratando de vício do produto, as alternativas que se abrem em favor do consumidor são as seguintes: a substituição do produto por outro da mesma espécie, em perfeitas condições de uso; a restituição imediata da quantia paga, monetariamente atualizada, sem prejuízo de eventuais perdas e danos; ou o abatimento proporcional do preço.
Ocorre que o artigo 18 em questão, no seu parágrafo primeiro, afirma categoricamente que pode o consumidor exigir, alternativamente e à sua escolha qualquer um desses direitos, “não sendo o vício sanado no prazo máximo de trinta dias”.
Trata-se de verdadeiro DIREITO DO FORNECEDOR e dessa afirmativa cabem algumas relevantes ponderações.
A primeira é que pelo § 3° do art. 18, “o consumidor poderá fazer uso imediato das alternativas do § 1° deste artigo sempre que, em razão da extensão do vício, a substituição das partes viciadas puder comprometer a qualidade ou características do produto, diminuir-lhe o valor ou se tratar de produto essencial”.
Curioso notar que em caso de produto essencial, o prazo de 30 dias não existe em favor do fornecedor e, portanto, depreende-se que o vício deve ser trocado imediatamente, se o consumidor assim o exigir. Anoto que nem sempre a questão é tão simples. Primeiro poderia se indagar o que é “produto essencial”. Sendo um conceito indeterminado, caberá ao juiz decisão no caso concreto, levando em conta a necessidade daquele consumidor específico. Não tenho dúvidas em afirmar, que para a minha avó, sua televisão era um produto essencial, pois significava a sua única forma de distração e objeto de sua dedicação por inúmeras horas do dia.
Se pensarmos no óculos de grau, certamente a essencialidade se verifica. Agora vejamos as dificuldades que o dispositivo pode apresentar. Isto porque, se imaginarmos certa loja que importa óculos italianos exclusivos, e apenas um modelo de cada, impossível será a substituição eventualmente exigida pelo consumidor de imediato. A solução que vislumbramos para o caso concreto é que a loja, em cumprimento à boa-fé objetiva, informe seus clientes antes da compra (dever de informar na fase pré-contratual) quanto à impossibilidade. Se o cliente aceitar esta condição e adquirir o produto, saberá as regras e terá que aceitar o prazo de 30 dias para sanar o vício.
Não poderá, então, o consumidor exigir o que não é possível (ad impossibilia nemo tenetur).
Outra questão curiosa diz respeito aos danos que ocorram neste período de 30 dias que a lei concede ao fornecedor. Imaginemos que o consumidor adquire um carro zero quilômetros e este apresenta um problema elétrico. O consumidor se dirige ao fornecedor e este diz que o problema será resolvido em 30 dias, invocando o §1º do art.
18.
Em conclusão, pelos próximos 30 dias, aquele consumidor que adquiriu o carro e cumpriu a sua parte no contrato de compra e venda integralmente, ficará privado do uso do bem e certamente terá despesas com a sua locomoção (táxi, ônibus, metrô, eventual locação de um veículo para o período, etc…). A pergunta que se faz é: quem arcará com estas despesas? Duas soluções são plausíveis.
Numa primeira análise, o prazo concedido de 30 dias é direito regular do fornecedor e, portanto, não pode este ser punido por meio de indenização, ao realizar o exercício regular de um direito. Neste sentido, afirma o Código Civil que pratica ato lícito quem exerce um direito regularmente (art. 188). Por este raciocínio, o consumidor arcaria com as despesas.
Em uma segunda análise, pode-se debater a questão por outro ângulo. É certo que o fornecedor tem um prazo para sanar o vício, mas, é certo também que ao consumidor não podem ser imputados os riscos do negócio. Se é o fornecedor que tem os lucros, terá também os ônus da atividade (ubi emolumentum, ibi onus). Assim, na situação em questão, se o fornecedor tem um direito, o consumidor não tem culpa pelo vício que o produto apresenta e, portanto, diante de inexistência de culpa de ambas as partes, a solução só pode ser uma: a responsabilidade é do fornecedor.
O Código Civil aborda a questão da distribuição de responsabilidades no caso de ausência de culpa: se o devedor for entregar a prestação ao credor e este não puder recebê-la, ainda que por motivo de força maior, o credor estará em mora, sob pena de o devedor, que não teve qualquer culpa, ter que arcar com as despesas que normalmente não arcaria. Há opção do sistema em onerar o credor que é a parte que recebe mais vantagens na relação jurídica.
Assim, se o devedor tem que entregar em certa data uma animal na fazenda do devedor e este não o recebe, ainda que em razão de um acidente de carro que o impediu de receber, o credor estará em mora e todas as despesas que o devedor tiver pára com o animal a partir de então, serão de responsabilidade do credor (art. 499 do CC).
Com esta orientação é que concordamos. Neste sentido, decidiu o Superior Tribunal de Justiça:
“Direito do Consumidor. Recurso Especial. Ação de conhecimento sob o rito ordinário. Aquisição de automóvel zero-quilômetro. Vícios do produto solucionados pelo fabricante no prazo legal. Danos morais. Configuração. Quantum fixado. Redução. Honorários advocatícios. Sucumbência recíproca. – O vício do produto ou serviço, ainda que solucionado pelo fornecedor no prazo legal, poderá ensejar a reparação por danos morais, desde que presentes os elementos caracterizadores do constrangimento à esfera moral do consumidor. – Se o veículo zero-quilômetro apresenta, em seus primeiros meses de uso, defeitos em quantidade excessiva e capazes de reduzir substancialmente a utilidade e a segurança do bem, terá o consumidor direito à reparação por danos morais, ainda que o fornecedor tenha solucionado os vícios do produto no prazo legal. (REsp 324629/MG, Rel. Ministra NANCY ANDRIGHI, TERCEIRA TURMA, julgado em 10/12/2002, DJ 28/04/2003 p. 198)”
Essas são apenas duas relevantes questões a respeito do parágrafo primeiro do artigo 18 do CDC que confere o direito ao fornecedor de sanar o vício em 30 dias.