Lendo a coluna do Prof. Paulo Lobo no Conjur, cheguei à seguinte conclusão: a questão das categorias jurídicas, tão desprezada pelos cultores dos princípios, pelos utilizadores da dignidade da pessoa humana como panaceia de todos os males, nunca precisou ser tão trabalhada
A coluna, de maneira brilhante, separa categorias que nunca deveriam ser confundidas: ancestralidade genética e parentalidade.
Vamos, de maneira didática, começar pelo começo (redundância dolosa do autor) explicando a diferença entre pai e ancestral genético.
I – Paternidade e ancestralidade genética se confundem?
Em termos fáticos, muitas vezes sim. João, manteve relação sexual com Maria e desta nasceu Antonio, que por eles é criado como filho. João é pai de Antonio e seu ancestral genético. A ancestralidade genética é um dado biológico e se apura, atualmente, com grande margem de precisão, por meio do exame de DNA (ou ADN). O direito ao conhecimento da ascendência genética é direito de personalidade (Parte Geral).
Contudo, mesmo em termos fáticos, as figuras podem não coincidir. João, manteve relação sexual com Maria e desta nasceu Antonio. João e Maria perdem o poder familiar e Antonio é adotado por Pedro, que o cria como filho. Pedro é pai de Antonio e João seu ancestral genético. A paternidade é um dado construído a partir do afeto como valor jurídico. Parentalidade (paternidade ou maternidade) é matéria de direito de família e nesse campo produzem-se efeitos
Na adoção, a figura do ascendente genético e a figura do pai não coincidem na mesma pessoa. Vejamos o artigo 41 do Estatuto da Criança e do Adolescente:
Art. 41. A adoção atribui a condição de filho ao adotado, com os mesmos direitos e deveres, inclusive sucessórios, desligando-o de qualquer vínculo com pais e parentes, salvo os impedimentos matrimoniais.
Os pais adotivos são, então, os pais (direito de família) e os “pais biológicos”, equivocadamente chamados de pais são meros ascendentes genéticos, sem qualquer efeito para o direito de família. A única ressalva, com nítido caráter eugênico, é a manutenção dos impedimentos matrimoniais. Há uma eficácia parcial e muito restrita da parentalidade entre o adotado e seus ancestrais genéticos.
Assim, com a adoção os anteriormente denominados “pais” passam à qualidade de ancestrais genéticos. A utilização do termo “pais biológicos” é imprópria, pois mascara a categoria jurídica.
Um terceiro exemplo contribui com a compreensão da questão. João faz doação de esperma em um banco. Pedro e Maria, casados, utilizam o esperma de João e desta técnica nasce Antonio, que é criado pelo casal. Pedro é pai de Antonio e João é apenas seu ascendente genético. Não há qualquer relação de parentesco entre João (doador de esperma) e Antonio, filho de Pedro e Maria
Do que trata o ECA em seu artigo 27[1]? Da parentalidade (Direito de Família) e não do conhecimento da ascendência genética (Parte Geral). O Estatuto garante o direito a um pai e uma mãe.
Do que trata o art. 48 do ECA[2]? Da ascendência genética (Parte Geral) e não de parentalidade (Direito de Família). O Estatuto garante o conhecimento da origem genética, apenas.
Em suma, se ocorre com frequência de o ancestral genético ser também pai, estas figuras não se confundem.
II – Paternidade e relação padrastal[3] se confundem?
Novamente de maneira didática, é necessário esclarecer que paternidade e relação padrastal são conceitos jurídicos distintos e que produzem efeitos distintos.
Pai é o homem que ocupa a posição de ascendente consanguíneo ou socioafetivo de primeiro grau em linha reta (art. 1591 do CC). Padrasto é o homem que se casa ou mantém união estável com a mãe de certa pessoa. É parente por afinidade de primeiro em linha reta (art. 1595, par. 1º do CC).
É de se frisar que a relação padrastal não se dissolve com o fim do casamento (art. 1.595, §2º do CC). Não há ex-padrasto ou ex-enteado
João se casa com Maria que é mãe de Antonio, fruto de um casamento anterior com Pedro. Pedro é pai e João é padrasto de Antonio.
João se casa com Maria que é mãe de Antonio, fruto de um casamento anterior com Pedro. Pedro, ausente, rompe qualquer relação com Antonio. Pedro prossegue sendo pai e João sendo padrasto de Antonio.
Padrasto não é pai biológico, nem pai socioafetivo. É padrasto. Simples assim. Mas padrasto não pode ser pai socioafetivo? Pode, mas não se trata de regra e neste ponto começa a confusão.[4]
Paternidade e relação padrastal são de Direito de Família, mas os efeitos são distintos
E agora algo de enorme importância: quais são os efeitos da relação paterno-filial e da relação padrastal?
São efeitos da relação paterno-filial (pai), nos termos do art. 1634 do CC:
– dirigir-lhes a criação e a educação;
– exercer a guarda unilateral ou compartilhada;
– conceder-lhes ou negar-lhes consentimento para casarem;
– conceder-lhes ou negar-lhes consentimento para viajarem ao exterior;
– conceder-lhes ou negar-lhes consentimento para mudarem sua residência permanente para outro Município;
– nomear-lhes tutor por testamento ou documento autêntico, se o outro dos pais não lhe sobreviver, ou o sobrevivo não puder exercer o poder familiar;
– representá-los judicial e extrajudicialmente até os 16 (dezesseis) anos, nos atos da vida civil, e assisti-los, após essa idade, nos atos em que forem partes, suprindo-lhes o consentimento;
– reclamá-los de quem ilegalmente os detenha;
– exigir que lhes prestem obediência, respeito e os serviços próprios de sua idade e condição.
É efeito único da relação enteado-padrasto para o direito civil: impedimento matrimonial para casamento (art. 1.521, II do CC).
Para o direito constitucional, há inelegibilidade em razão do parentesco por afinidade até o segundo grau (art. 14, par. 7º). Logo a relação padrastal gera inelegibilidade reflexa[5]
Para o direito penal, a relação padrastal gera consequências: ao tratar dos crimes sexuais contra vulnerável, o art. 226 do Código Penal prevê que a pena é aumentada de metade se o agente é padrasto ou madrasta. Também, o art. 230 prevê que a pena para o rufianismo é maior se a vítima tiver entre 14 e 18 anos e o crime for cometido por padrasto ou madrasta.[6]
Na próxima Coluna, prossigo com as reflexões.
[1] Art. 27. O reconhecimento do estado de filiação é direito personalíssimo, indisponível e imprescritível, podendo ser exercitado contra os pais ou seus herdeiros, sem qualquer restrição, observado o segredo de Justiça.
[2] Art. 48. O adotado tem direito de conhecer sua origem biológica, bem como de obter acesso irrestrito ao processo no qual a medida foi aplicada e seus eventuais incidentes, após completar 18 (dezoito) anos.
Parágrafo único. O acesso ao processo de adoção poderá ser também deferido ao adotado menor de 18 (dezoito) anos, a seu pedido, assegurada orientação e assistência jurídica e psicológica
[3] O VOLP e o Dicionário Houaiss não reconhecem o substantivo “padrastio” e sim o adjetivo “padrastal”.
[4] Depois analisarei a situação em que as posições se confundem.
[5] Art. 14, §7º São inelegíveis, no território de jurisdição do titular, o cônjuge e os parentes consangüíneos ou afins, até o segundo grau ou por adoção, do Presidente da República, de Governador de Estado ou Território, do Distrito Federal, de Prefeito ou de quem os haja substituído dentro dos seis meses anteriores ao pleito, salvo se já titular de mandato eletivo e candidato à reeleição.
[6] Ver ainda arts. 228, §1º; 231, §2º, III e 231-A, §2º, III, todos do Código Penal.