Na nossa última coluna da Carta Forense (AQUI) estabelecemos um diálogo com o artigo do Prof. Alessandro Segalla (AQUI). O artigo conclui que se, o afiançado inadimpliu sua prestação, o fiador só poderia se exonerar em pagando a dívida integralmente.
Considera o autor que não poderá se exonerar sem tal pagamento, pois o direito potestativo sofre restrições, mormente se o garante tiver subscrito a garantia como devedor principal e solidário.
I – “Principal pagador” e “devedor solidário”. Nomen juris e a rosa de Romeu.
Maurício Bunazar, admirador confesso da obra shakespeariana, costuma citar marcante diálogo do drama “Romeu e Julieta”. Naquele diálogo temos uma reflexão dos amantes de Verona a respeito do fato de pertencerem a famílias inimigas. Ele um Montecchio e ela Capuleto. Mas realmente o nome importa? Diz Romeu:
“Que há num simples nome? O que chamamos rosa, com outro nome não teria igual perfume?”
O nome juris é relevante para a identificação do instituto e seus efeitos? Se o contrato denominado comodato contiver remuneração em favor do “comodante” pelo uso da coisa, prevalece a categoria do comodato ou há verdadeira locação?
O nomen juris é menos relevante (para não dizer totalmente irrelevante) que a causa típica do negócio jurídico. Se há cessão da posse direta mediante remuneração em dinheiro o contrato só pode ser de locação.
É cláusula de estilo no contrato de fiança aquela que diz que o fiador se torna “devedor solidário e principal pagador”.
Não temos dúvida que a grande aplicação do contrato de fiança ocorre na locação de imóvel urbano, e comumente, nos contratos-formulários, percebe-se cláusula de estilo com o seguinte teor:
“CLÁUSULA X: O FIADOR e principal pagador do LOCATÁRIO, responde solidariamente por todos os pagamentos descritos neste contrato bem como, não só até o final de seu prazo, como mesmo depois, até a efetiva entrega das chaves ao LOCADOR e termo de vistoria do imóvel.”
A locução ‘devedor solidário’, por si, basta para indicar que a obrigação do fiador deixou de ser subsidiária e a obrigação passou a ter mais de um sujeito no polo passivo, podendo o credor escolher de qual deles cobrar e se cobra a dívida total ou parcialmente.
A expressão ‘principal pagador” muda a categoria jurídica do fiador? A resposta é não, pois é locução vazia já que repete o efeito da solidariedade: o fiador deixa de ser devedor subsidiário como o seria nos termos do art. 827 do Código Civil.
Agora, deve-se frisar que mesmo nessa situação perante o credor, o fiador não se torna em sentido técnico devedor, pois, se vier a pagar a dívida, total ou parcialmente, terá direito de regresso contra o devedor quanto à totalidade dos valores pagos. Sua função perante o devedor prossegue sendo de garante.
É de Pontes de Miranda a lição:
“Mesmo quando o fiador se torna devedor principal, a sua principalização não o torna sujeito passivo na relação entre o credor e o devedor. Não há na cláusula ‘devedor principal’ assunção de dívida alheia. Por isso, é preciso ter-se todo o cuidado e toda a atenção na invocação de regras jurídicas sobre a solidariedade das dívidas quando se cogita de fiador solidário. A solidariedade, na fiança, é atípica.” (Tratado de Direito Privado, Borsói, Tomo 44, p. 105)
E mais. Ainda assumindo a posição de ‘principal pagador’ e de ‘devedor solidário’ a natureza jurídica da fiança prossegue: é um contrato unilateral e benéfico em que o fiador só tem desvantagens.
A conclusão que se chega é que o fiador, principal pagador e devedor solidário, não deixa de ser fiador, mas apenas perde o benefício de ordem do art. 827 do Código Civil. Altera-se um efeito acidental da fiança, mas não sua natureza jurídica.
Então, se a locução “principal pagador” não é bastante para mudar a situação do fiador que assumiu solidariamente a obrigação junto ao credor, mas que continua na posição de garante, já que tem o direito de regresso contra o devedor principal e se a fiança mantém sua natureza jurídica intacta, é de se perguntar se a mora ou inadimplemento do devedor impede o exercício do direito potestativo de exoneração quando do descumprimento do contrato pelo devedor.
II – Contaminação de eficácia
As conclusões a que chega o Prof. Alessandro Segalla, então, são as seguintes:
– a exoneração do fiador somente se viabilizará se o afiançado não estiver em uma situação de mora ou inadimplência, mormente se o garante tiver subscrito a garantia como devedor principal e solidário.
– sendo o fiador responsável pelo adimplemento da dívida do afiançado, quando este estiver em mora o exercício do direito à exoneração somente poderá ser exercido e será juridicamente possível se o fiador pagar integralmente a dívida do afiançado pela qual se responsabilizou e, ato contínuo, notificar o credor para manifestar a sua exoneração
Contudo, em uma análise eficacial dos contratos (de locação, principal e de fiança, acessório) com fundamento na verificação da contaminação de efeitos, ver-se-á que as conclusões são diversas daquelas defendidas pelo Prof. Segalla.
No caso da fiança e do contrato principal (utilizamos a locação apenas como exemplo, mas poderia ser outro qualquer) temos a clássica coligação contratual. Da coligação não resulta contrato unitário, porque os contratos se mantém individualizados. Os contratos coligados não perdem a individualidade, aplicando-lhes o conjunto de regras próprias do tipo a que se ajustam.
No caso da fiança e do contrato de locação, temos a chamada coligação de união com dependência unilateral, conforme classifica Ennecerus. Esta se verifica quando não há reciprocidade. Um só dos contratos é que depende do outro. Tal coligação requer a subordinação de um contrato a outro, na sua existência e validade. Há uma relação de acessoriedade.
E quais regras aplicamos nesta hipótese de coligação? Como os contratos permanecem individualizados, o condicionamento de um ao outro não constitui obstáculo à aplicação das regras peculiares a cada qual. Não ocorre, assim, absorção pelo tipo principal dos caracteres essenciais do tipo secundário, de modo que, em geral, serão as regras do tipo principal que seriam aplicadas.
As regras da fiança não se contaminam pelas regras da locação. A fiança prossegue sendo um contrato benéfico e que não comporta interpretação extensiva ou aplicação de regras desfavoráveis ao fiador por analogia. Logo, a única conclusão que se chega é que o fiador pode, respeitando nos prazos estabelecidos por lei, exercer seu direito de exoneração quando o contrato se prorroga por prazo indeterminado. Obrigar o fiador a pagar a dívida para, só então, admitir sua exoneração, é contaminação indevida de eficácia e que compromete a natureza jurídica da fiança, sua gratuidade.
Termino lembrando que a fiança tal, como interpretada pelo Prof. Segalla, significaria ao fiador, nas palavras de Clóvis Bevilaqua, uma verdadeira túnica de Nessus, o que é inadmissível para o direito contemporâneo e fere a clássica interpretação dos contratos benéficos.