I – Introdução
Depois de longos anos, volto a um tema que está entre meus prediletos e que é de grande utilidade prática: o contrato de fiança.
Escrevo essas linhas em homenagem ao Prof. Alessandro Schirrmeister Segalla que, no mês de setembro p.p., publicou nesta Carta Forense um artigo designado: “Mora do Afiançado e o Contrato de Fiança”.
Proponho nas presentes linhas um raciocínio oposto ao desenvolvido pelo Prof. Segalla em seu artigo.
Já no passado, estabeleci um processo dialético nesta mesma Carta Forense. Em junho de 2008, propus uma leitura diferente daquela contida no artigo do Dr. Andrei Pitten Velloso quanto à possibilidade de tributação das indenizações por danos morais. Defendia o autor que sobre a indenização deveria haver incidência de Imposto de Renda e eu, à época, concluía que não seria possível a incidência do tributo. Tempos depois o STJ pacificou o entendimento pelo qual “não incide imposto de renda sobre a indenização por danos morais (Súmula 498 de 2012).
O desafio agora é analisar as premissas do artigo de autoria do Prof. Segalla e expor minha discordância com as conclusões.
Em breve síntese, a pergunta que o artigo pretende responder é “comportaria algum limite objetivo ou apenas estaria vinculado ao limite subjetivo consistente na manifestação de vontade do fiador?”
As premissas do autor, em síntese, são as seguintes:
– direito potestativo à exoneração existe para proteger o fiador que assegurou o adimplemento de um afiançado não-inadimplente, isto é, aquele cujas obrigações encontram-se em dia, pois as obrigações assumidas devem ser fielmente executadas;
– se pelo contrato de fiança o fiador garante que o devedor principal adimplirá a sua obrigação, o não-cumprimento (mora ou inadimplemento absoluto) da obrigação principal tem o efeito de atingi-lo e também torná-lo inadimplente perante o credor principal, principalmente se tiver subscrito a fiança na condição de principal pagador ou devedor solidário, pois o fiador, ao prometer fato de terceiro, é responsável por dívida alheia.
Então vem a conclusão do artigo:
– a exoneração do fiador somente se viabilizará se o afiançado não estiver em uma situação de mora ou inadimplência, mormente se o garante tiver subscrito a garantia como devedor principal e solidário.
– sendo o fiador responsável pelo adimplemento da dívida do afiançado, quando este estiver em mora o exercício do direito à exoneração somente poderá ser exercido e será juridicamente possível se o fiador pagar integralmente a dívida do afiançado pela qual se responsabilizou e, ato contínuo, notificar o credor para manifestar a sua exoneração
II – Natureza jurídica do contrato fiança
O contrato de fiança é o contrato pelo qual uma pessoa garante satisfazer ao credor uma obrigação assumida pelo devedor, caso este não a cumpra (CC, art. 818). É contrato que se forma entre o fiador e o credor, não sendo o afiançado parte contratual. Exatamente por isso o Código Civil admite fiança estabelecida entre credor e fiador contra a vontade do afiançado-devedor
(CC, art. 820).
Trata-se de um contrato pelo qual o fiador disponibiliza o seu patrimônio para garantir dívida de terceiro, o devedor principal. É um exemplo claro de responsabilidade (Haftung) sem dívida própria (Schuld), já que o fiador é mero garantidor. Trata-se de uma espécie de garantia pessoal ou fidejussória. Difere das garantias reais (penhor, hipoteca, anticrese), pois nestas o devedor ou o terceiro disponibilizam apenas determinada coisa como garantia da dívida.
Quanto à natureza jurídica podemos afirmar que a fiança é contrato unilateral, gratuito, consensual, solene e acessório. É unilateral, pois só gera prestação para o fiador e não para o credor. É solene, pois a lei só admite a fiança por escrito (CC, art. 819), sendo nula a fiança verbal (CC, art. 166, IV) e é acessório, pois somente existe para garantir patrimonialmente dívida de um terceiro. Não existe por si, mas dependerá da existência do principal (CC, art. 92).
É um contrato gratuito, pois o fiador nada recebe, não tem qualquer vantagem patrimonial em afiançar o devedor. Nada impede que as partes prevejam uma remuneração em favor do fiador, mas, nas situações da vida, em regra isso não ocorre.
Logo, a conclusão que se chega é que, com acerto, a fiança não comporta interpretação extensiva (art. 819, CC).
III – Direito potestativo
Segundo o conceito clássico, direito potestativo é aquele que pode ser exercido independentemente da concordância ou colaboração da outra parte, que se encontra em estado de sujeição.
O fato de um direito ser potestativo não significa que a lei não possa impor limitações a ele. A limitação mais comum se dá no plano da eficácia.
Efetivamente tem razão o Prof. Segalla ao afirmar que “a figura da exoneração tornou-se sinônimo de resilição ou denúncia, pois passou a submeter a manutenção da garantia fidejussória a mera conveniência do fiador nas situações em que a fiança passou a viger por tempo indeterminado.”
A resilição unilateral (na modalidade denúncia) em regra tem sua eficácia suspensa por tempo especificado em lei. Na dispensa do empregado pelo empregador temos o aviso prévio cujo prazo pode varia entre 30 a 90 dias. Nas hipóteses de denúncia vazia do contrato de locação, o prazo será de 30 dias.
No caso da exoneração do fiador, pelo texto do Código Civil o prazo de suspensão dos efeitos da resilição é de 60 dias (art. 835) e na fiança a contrato de locação de imóvel urbano o prazo é de 120 dias (art. 40, X da Lei 8.245/91).
A mora do afiançado seria fator limitador do direito potestativo do fiador de resilição contratual?
É isso que responderemos na próxima coluna da Carta Forense
Para você citar:
SIMÃO, José Fernando. Mora do afiançado não impede a exoneração do fiador nos contratos por prazo indeterminado – Parte 1. Jornal Carta Forense, 03 out. 2014.