Em nossa última coluna, falamos a respeito da evolução do conceito de concubinato para se chegar ao conceito de união estável e as questões patrimoniais decorrentes das relações entre homens e mulheres não casados.
Em 1998, com a promulgação da Constituição Federal, o instituto da união estável sofre uma verdadeira mudança de status. Ainda que poucas dúvidas existissem sobre a condição de família daqueles que convivem em união estável, estas foram definitivamente sepultadas pelo art. 226, § 3º da CF.
Cabe ressaltar que o legislador cuidou de disciplinar a matéria por meio de dois diplomas: lei 8.971/94 (de 29 de dezembro de 2004) e 9278/96 (de 10 de maio de 1996).
Assim é que a Lei 8971/94, em seu artigo 3º, dispõe:
“Art. 3º Quando os bens deixados pelo (a) autor (a) da herança resultarem de atividade em que haja colaboração do (a) companheiro, terá o sobrevivente direito à metade dos bens” (grifamos).
Desconsiderando a pobreza e pouca técnica na composição gramatical do dispositivo, que se utiliza de parênteses para indicar que o dispositivo se aplica tanto à companheira quanto ao companheiro, a lei traz um ponto positivo, pois não mais exige esforço comum (como fazia a Súmula 380 do STF), mas apenas a colaboração do companheiro. Colaborar não significa sociedade de fato, nem despesa econômica na aquisição do bem. Colaborar significa auxiliar, ajudar e isso não se restringe ao trabalho remunerado fora do lar, que gere renda, mas também inclui o conceito de cuidar dos filhos, do companheiro e do lar.
Esta interpretação é consentânea com o entendimento de colaboração (menos machista) da mulher e sua participação na família pós-moderna.
É verdade que o artigo 3º da Lei 8971/94 sugere que a meação do companheiro só surge em razão de seu falecimento. Há grave confusão teórica entre o instituto da meação (que surge no momento da aquisição do bem), com o instituto da sucessão (que decorre da morte). Mas a doutrina tratou de esclarecer o seguinte: o direito à meação foi garantido aos companheiros quando da aquisição de bens a título oneroso, independentemente do esforço comum, bastando a colaboração para tanto. Ainda, o direito à meação surge quando da aquisição, e não da dissolução da união estável mortis causa.
O dispositivo teve vida curta e pouca ou nenhum aplicação, pois, pouco mais de 1 ano após a edição da lei em questão, foi promulgada a lei 9.278/96, que em seu artigo 5º, de maneira técnica e coerente, assim dispõe:
“Os bens móveis e imóveis adquiridos por um ou por ambos os conviventes, na constância da união estável e a título oneroso, são considerados fruto do trabalho e da colaboração comum, passando a pertencer a ambos, em condomínio e em partes iguais, salvo estipulação contrária em contrato escrito.”
Finalmente, a lei se afasta de termos controversos criando a meação dos aquestos. Não importa se houve esforço comum (Súmula 380) ou colaboração (L. 8971/94).
A meação decorre da lei, salvo se houver contrato escrito em sentido contrário. Trata-se de presunção iuris tantum que admite prova em sentido contrário, qual seja, o contrato escrito de convivência. Como a lei não determina, o contrato terá forma livre e, portanto, plenamente válido ainda que pactuado por instrumento particular.[1]
Esta era a situação dos aspectos patrimoniais de da união estável quando, em 11 de janeiro de 2003, entrou em vigor o Código Civil de 2002, revogando a legislação anterior no tocante ao objeto de nosso estudo.
II – Código Civil de 2002: um regime de bens aos companheiros. Direito intertemporal.
Com relação aos aspectos patrimoniais da união estável, a economia do legislador de 2002 em editar regras fica evidente com a redação do art. 1.725:
“Art. 1.725. Na união estável, salvo contrato escrito entre os companheiros, aplica-se às relações patrimoniais, no que couber, o regime da comunhão parcial de bens”.
Fato é que o Código Civil cria um regime de comunhão parcial de bens entre os companheiros. Surge então uma pergunta: se a união estável se iniciou antes da vigência do atual Código Civil (antes de 11 de janeiro de 2003), o regime de comunhão parcial se aplica aos bens adquiridos onerosamente?
A resposta é negativa. A lei não retroage para atingir situações pretéritas em prejuízo ao direito adquirido. Podemos traçar uma linha do tempo para aplicação das diversas orientações em relação ao tema:
– bens adquiridos a partir da década de 1960 – incidência da Súmula 380 do STF com a partilha de bens de acordo com a prova do esforço comum;
– bens adquiridos a partir de 1995 – incidência do art. 3º da Lei 8.971/94 com a partilha de bens adquiridos onerosamente na constância da união estável sendo desnecessária a prova do esforço comum;
– bens adquiridos a partir de maio de 1996 – incidência do art. 5º da Lei 9.278/96 com a partilha de bens adquiridos onerosamente na constância da união estável decorrente do condomínio;
– bens adquiridos a partir de janeiro de 2003 – incidência do art. 1725 do Código Civil com a partilha de bens adquiridos onerosamente na constância da união estável decorrente da comunhão de bens.
[1] Diferentemente, o pacto antenupcial deve ser firmado por escritura pública sob pena de nulidade absoluta (art. 1.653).
Fonte: Jornal Carta Forense.