Em tempos de pouco cuidado com as categorias jurídicas, em tempos em que se cativa a plateia por meio da principiologia, ainda que em afronta ao texto expresso de lei, em tempos em que o Supremo Tribunal Federal é aplaudido quando nega a aplicação da Constituição, em tempos em que o politicamente correto é a tônica no debate jurídico, que amordaça os docentes e empobrece o debate nas universidades, não recebi com surpresa a Lei 13.532, de 2017, que acresceu o parágrafo 2º ao artigo 1.815 do CC:
“§ 2º Na hipótese do inciso I do art. 1.814, o Ministério Público tem legitimidade para demandar a exclusão do herdeiro ou legatário”.
Do que se trata a questão? Uma breve digressão se faz necessária para explicar a alteração do Código Civil.
O sistema brasileiro, em matéria sucessória, vive um dilema criado por suas matrizes: o Direito romano e o Direito germânico. O Direito romano tomava por base a liberdade de testar em matéria patrimonial. Era a autonomia privada que norteava o sistema sucessório. A premissa romana era simples: se a pessoa amealhou seu patrimônio, cabe a ela e só a ela decidir o destino de seus bens. O Direito germânico, ao contrário, prestigiava a proteção da família, do grupo de pessoas que estava próximo ao testador, e, portanto, limitava a liberdade de testar. A existência da legítima, ou seja, de uma quota indisponível destinada aos herdeiros necessários ou legitimários é decorrência da tradição germânica.
O espírito de compromisso, nas palavras de Antonio Junqueira de Azevedo, pretende conciliar dois valores antagônicos: liberdade de testar (autonomia privada) e não liberdade de testar (intervenção do Estado para restringir a autonomia privada).
É da tradição luso-brasileira a existência da legítima em favor dos herdeiros necessários. Na vigência das Ordenações Filipinas, a legítima em favor de ascendentes e descendentes era de 2/3 dos bens do testador. Assim vejamos:
Livro IV – Título 91. “E falecendo filho ou filha com testamento (…) deve necessariamente deixar as duas partes de seus bens a seu pai ou sua mãe se os tiver e da terça parte poderá ordenar como lhe aprouver”.
“Livro IV – Título 92. E não havendo filhos legítimos herdarão os naturais todos os bens da herança de seu pai, salvo a terça parte, se o pai a tomar, da qual poderá dispor como lhe aprouver”.
No Brasil, a legítima, que sempre foi fixa, quer seja em favor de descendentes ou ascendentes, teve uma redução com a Lei Feliciano Penna em 1907[1]. O Código Civil de 1916 e o Código Civil de 2002 mantiveram a legítima em 50%, com uma diferença: houve um aumento do rol de herdeiros necessários, pois o artigo 1.845 do atual CC incluiu o cônjuge como herdeiro necessário.
De acordo com o espírito de compromisso, a sistemática germânica tem ganhado espaço, ou seja, a limitação à liberdade de testar tem prevalecido sobre a autonomia privada.
Pois bem. Se a legítima é a maior restrição à autonomia privada em matéria testamentária, a forma de privar o herdeiro necessário da legítima é a deserdação. O testador pode, desde que indicando uma das causas previstas nos artigos 1.814, 1.962 ou 1.963 do Código Civil, por testamento, afastar o herdeiro necessário da sucessão. Trata-se de numerus clausus, ou seja, não haverá deserdação se não nas hipóteses legais.
Mesmo ocorrendo a deserdação, por testamento, esta deve ser confirmada por ação a ser proposta pelos interessados após morte do testador[2].
Além da deserdação, da exclusão do herdeiro por vontade do testador, temos também a figura da indignidade. Ocorrendo uma das causas do artigo 1.814 do CC, podem os interessados, após a morte do testador, propor a ação de indignidade para afastar o herdeiro, necessário ou facultativo, da sucessão. Essa ação pode ser proposta no prazo de quatro anos contados da abertura da sucessão[3].
Note-se que indignidade e deserdação são formas de exclusão do herdeiro ou legatário da sucessão, quer seja por ação de indignidade, quer seja por deserdação posteriormente confirmada por ação.
Em conclusão, indignidade e deserdação abrandam, suavizam, a proteção dos herdeiros necessários e são decorrência da autonomia privada, aumentando a liberdade de testar.
Quem pode propor a ação de indignidade ou a ação confirmatória da deserdação? Apenas aqueles beneficiados pelo afastamento do indigno ou deserdado da sucessão. Exemplos simples ajudam a compreender a questão.
Sendo dois irmãos os herdeiros, se um for excluído da sucessão, o outro recebe toda herança. Assim, há interesse na exclusão da sucessão. Por outro lado, se o excluído da sucessão tiver filhos, o irmão não tem interesse na propositura da ação, pois os beneficiados são os filhos do indigno ou deserdado que herdam por representação.
Qual é o conceito de interessado em sentido jurídico? A ação conduz a um benefício: receber quinhão ou bem que o autor da ação não receberia ou aumentar a quota-parte do herdeiro ou legatário sobre certo bem ou quinhão.
Dessa nota óbvia percebe-se que o MP não pode nem poderia propor a ação em questão, pois estará defendendo direito patrimonial e disponível de terceiro. Frise-se: patrimonial e disponível de um particular.
Poucas notas indicarão que a legitimidade do MP é fruto exclusivamente do politicamente correto, de uma resposta ao caso Richthofen e da vontade sanguinária e punitiva que reina nos corações de parte dos brasileiros neste quarto do século XXI.
a) O direito à herança é puramente patrimonial. Não há qualquer razão para o MP se intrometer em matéria patrimonial em que não há interesse de incapaz nem cuida de mínimo existencial.
b) O direito à herança é disponível. Ninguém é obrigado a ser herdeiro. Não só é possível a renúncia abdicativa como também a equivocadamente chamada renúncia translativa ou in favorem.
Quais são as consequências disso? Se, contra a vontade do herdeiro beneficiado pelo reconhecimento da indignidade, o MP propuser a ação e esta for julgada procedente, basta ao beneficiado efetivar a doação ao indigno da quota que lhe foi retirada. Não há expressa vedação, o que indica que o legislador nunca imaginou que alguém, que não o beneficiado, poderia propor a demanda.
Ainda, se o MP propuser a ação, como aparentemente indica a lei, e o beneficiado pela indignidade se opuser expressamente, teremos uma situação esdrúxula: o MP poderia prosseguir com a demanda? A resposta por óbvio é negativa. Seu resultado seria inútil e não desejado.
Tratar o Direito Civil como o Direito Penal, dando-lhe caráter punitivo, revela desvio de função da categoria e desconhecimento do Direito Privado.
Alguns afirmam que se trata de uma questão de ética. O Direito Civil não pode e não resolverá os dilemas éticos da humanidade. É forma de regular as relações particulares e resolver as questões concretas.
Por fim, Ana Luiza Nevares indica (em mensagem ao autor) que o correto seria, nessa hipótese, que se reconhecendo a indignidade por meio de ação proposta pelo MP, contra a vontade do herdeiro ou legatário beneficiado, o quinhão fosse destinado a um fundo especial. A sugestão é de lege ferenda. Atualmente, isso não é possível.
Se o sistema reformado fosse coerente, deveria o MP ser legitimado também para propor a ação que confirma a deserdação. Nem isso o legislador fez.
Em suma: quais os efeitos da legitimidade do MP para propor a ação de indignidade?
a) O MP não poderá propor a ação se os beneficiados forem maiores e capazes. A ação só pode ser proposta se os beneficiários pela indignidade forem menores ou incapazes.
b) A ação proposta pelo MP será extinta se o herdeiro ou legatário se opuser a ela. Assim, proposta a ação, antes da citação do réu ou réus, caberá ao juiz intimar os demais herdeiros beneficiados. Se todos se opuserem, a ação é extinta de imediato por manifesta inutilidade.
c) Se houver propositura pelos herdeiros ou legatários beneficiados, o MP não participará da demanda a qualquer título.
Outras interpretações atendem ao desejo punitivo e sanguinário que sobeja em parte dos brasileiros. Contudo, juridicamente, o Direito Civil resta agredido pela mudança inútil e perigosa.
[1] Artigo 2º, Decreto 1.839 de 31 de dezembro de 1907.
[2] Art. 1.965. Ao herdeiro instituído, ou àquele a quem aproveite a deserdação, incumbe provar a veracidade da causa alegada pelo testador.
Parágrafo único. O direito de provar a causa da deserdação extingue-se no prazo de quatro anos, a contar da data da abertura do testamento.
[3] Redação original do parágrafo único do artigo 1.815 do CC (atual parágrafo primeiro): “O direito de demandar a exclusão do herdeiro ou legatário extingue-se em quatro anos, contados da abertura da sucessão”.