Os temas da mora e do inadimplemento absoluto da obrigação são tratados Título IV do Livro das Obrigações denominado “Do inadimplemento da obrigação”.
A doutrina divide o inadimplemento, tradicionalmente, em dois institutos: inadimplemento relativo (mora) ou inadimplemento absoluto. A diferença entre os institutos não se verifica, como podem pensar alguns, no fato de a mora significar simples atraso no cumprimento e o inadimplemento absoluto o total descumprimento.
Tal assertiva revela dois equívocos. O primeiro é que o atraso no cumprimento da prestação pode gerar inadimplemento absoluto, mora, ou simples retardamento sem culpa. Explico. Se a prestação perder a utilidade para o credor, estamos diante de inadimplemento absoluto (CC, art. 395, parágrafo único).
Para não ficarmos no lugar comum dos manuais (que sempre mencionam a costureira que entrega à noiva o vestido no dia seguinte ao casamento), pensemos no exemplo de um exportador de café que enviará ao exterior um grande lote de café. O vendedor das sacas, culposamente, atrasa a entrega do café em 8 horas e, quando chega ao porto, o navio já partiu. Evidente que se trata de inadimplemento absoluto, pois as sacas são inúteis ao comprador que as adquiriu exatamente com o único objetivo de exportá-las. Se, por outro lado, o comprador tem uma empresa de torrefação de café em que transformará os grãos em pó de café, o atraso culposo de 8 horas significará mora, pois a prestação ainda é útil ao credor.
Na hipótese de inadimplemento absoluto o credor poderá cobrar as perdas e danos decorrentes da conduta culposa do devedor que não poderá cumprir a prestação em razão de sua inutilidade. Já na hipótese de mora, como a prestação ainda é útil, o devedor poderá purgá-la (emendatio morae), ou seja, entregar as sacas de café e indenizar o credor quanto aos prejuízos sofridos (CC, art. 401, II). Assim, o devedor pagará ao credor o valor das horas em que a fábrica de beneficiamento do café ficou parada aguardando as sacas que não chegaram na hora avençada.
Explica Carvalho Santos, citando Chironi, que embora mora e inadimplemento sejam formas de injúria contratual, distinguem-se perfeitamente: a mora não tira ao devedor a possibilidade de cumprir mais tarde a obrigação, enquanto o inadimplemento define de vez (Código Civil interpretado, v. XII, 1936, p. 315).
Por fim, se as sacas forem entregues 8 horas após o avençado, pois houve uma chuva descomunal, a estrada ficou destruída e isso gerou o atraso, estamos diante do caso fortuito ou de força maior (não estabeleceremos nas presentes linhas qualquer distinção entre os institutos), e o devedor não responderá pelas perdas e danos (CC, art. 393).
O segundo ponto que invalida a afirmação pela qual mora é o simples atraso é que o conceito de mora no Brasil é tríplice: a mora se verifica se o cumprimento se dá fora do tempo, do local e da forma estabelecidos por lei ou contrato (CC, art. 394).
É verdade que o vocábulo latino mora, é radical da palavra demora. É verdade também que em outros países, a noção de mora é sempre ligada ao atraso[1].
O Projeto Clóvis Beviláqua, do qual se originou o Código Civil de 1916, ao definir mora, em seu artigo 110, assim o fazia:
“Ficarão constituídos em mora o devedor que não efetuar o pagamento e o credor que não o quiser receber no tempo oportuno”
Na Câmara dos Deputados, o artigo sofre emenda e passa a ter a seguinte redação:
“Art. 956. Considera-se em mora o devedor que não efetuar o pagamento e o credor que o não quiser receber no tempo, lugar e pelo modo convencionados“
E, finalmente, o artigo recebe a seguinte redação quando da promulgação do Código Civil de 1916:
“Art. 955. Considera-se em mora o devedor que não efetuar o pagamento e o credor que o não quiser receber no tempo, lugar e forma convencionados“
A mudança efetuada na Câmara dos Deputados, para se incluir no conceito de mora a noção de lugar e modo, além de tempo, consta da Ata da 31ª Reunião datada de 28 de julho de 1900 e presidida pelo futuro Presidente da República Epitácio Pessoa e que contava com a participação de Francisco de Paula Lacerda de Almeida.
Clóvis Beviláqua, ao comentar o art. 955, explica que incorre em mora o devedor que não efetua o pagamento no tempo, ou não o realiza no lugar estabelecido; ou ainda não cumpre a prestação pelo modo, a que está obrigado. Da mesma forma, se o credor se recusa a receber o pagamento no lugar indicado no título da obrigação, pretendendo que esta se execute em outro, ou se exige o pagamento de forma diferente da estatuída, incorrerá em mora, ainda que se ponha de lado a circunstância do tempo que, aliás, é essencial ao conceito de mora (Código Civil, v. IV, 1958, p. 88).
Isso porque, apesar do conceito tríplice, se o credor aceitar o pagamento na forma ou lugar diferentes dos avençados, dentro do prazo para pagamento, mora não há. Isso não significa que o credor não tenha justo motivo para recusar o pagamento se o devedor quiser pagar em lugar ou forma diferente do contratado.
Dizer que no direito brasileiro a mora se limita ao tempo e que o pagamento fora do lugar ou da forma significa cumprimento defeituoso, como querem alguns, é negar a vigência ao artigo 394 do atual Código Civil que assim dispõe:
“Art. 394. Considera-se em mora o devedor que não efetuar o pagamento e o credor que não quiser recebê-lo no tempo, lugar e forma que a lei ou a convenção estabelecer“.
Feita esta clara diferenciação entre mora e inadimplemento absoluta, cabe saber se os conceitos se aplicam à obrigação de não fazer (obrigação negativa) ou apenas às obrigações de dar e de fazer (obrigações positivas). E mais: caso a resposta seja positiva, quando se inicia a mora nas obrigações negativas?
Estas respostas virão em nossa próxima coluna da Carta Forense.
[1] Neste sentido, o art. 804, 2, do Código Civil português: “2. O devedor considera-se constituído em mora quando, por causa que lhe seja imputável, a prestação, ainda possível, não foi efectuada no tempo devido“.