Introdução
A pandemia decorrente do coronavírus, causador da Covid-19, traz (e certamente continuará trazendo) efeitos nefastos para a economia mundial. O mercado imobiliário, que até pouco tempo ameaçava a sua retomada econômica, certamente não passará incólume à esperada e longa crise. Duas tradicionais incorporadoras (embora com dificuldades financeiras pré-crise) pediram recuperação judicial já no mês de abril e outras tantas passarão por enormes dificuldades nos próximos anos e meses1.
Essa mesma situação dramática se verifica com relação aos muitos brasileiros que já perderam (e outros tantos que ainda perderão2) os seus empregos ou têm abrupta diminuição de suas receitas porque são comerciantes ou profissionais autônomos, cujas atividades estão paralisadas.
Considerando que o cenário é desolador na economia, afinal afirma-se que 80% do PIB mundial colapsou em razão do confinamento, a economia globalizada passou por um abalo nunca dantes ocorrido (nem na crise da bolsa de Nova Iorque em 1929, nem na crise do petróleo nos anos 1970), muitos artigos jurídicos estão sendo produzidos para analisar os efeitos da pandemia nos contratos em geral e, sobretudo, no âmbito da locação3. Contudo, poucos artigos acadêmicos trataram, pelo menos como objeto principal do presente estudo, da resolução ou revisão da promessa de compra e venda na incorporação imobiliária quando o fundamento é a pandemia.
Antes, contudo, necessária uma breve análise do funcionamento e estrutura da incorporação imobiliária, bem como do regime específico da extinção dos contratos de promessa de compra e venda, nos termos da lei 4.591/1964.
A estrutura da incorporação imobiliária e a extinção do vínculo contratual nos termos da Lei 4.591/1964
A incorporação imobiliária, segundo Melhim Chalhub4, é “a atividade de coordenação e consecução de empreendimento imobiliário, compreendendo a alienação de unidades imobiliárias em construção e sua entrega aos adquirentes, depois de concluídas, com a adequada regularização no Registro de Imóveis competente”5.
Tal como determina a lei 4.591/1964 (artigo 32), o incorporador fica autorizado a alienar unidades futuras de empreendimento a ser desenvolvido, a partir do registro do memorial de incorporação na matrícula do terreno. O memorial da incorporação imobiliária requer a apresentação de uma série de documentos, dentre eles (i) título de propriedade do terreno ou de cessão de direitos ou permuta; (ii) certidões negativas do incorporador; (iii) projeto de construção aprovado pelas autoridades; (iv) cálculo das áreas das edificações; (v) memorial descritivo das especificações da obra projetada; (vi) discriminação das frações ideais de terreno; (vii) minuta da futura convenção de condomínio, dentre outros.
O objetivo da Lei, como se nota, é conferir maior segurança jurídica ao adquirente, que somente pode adquirir a futura unidade com o registro do memorial de incorporação que comprova a viabilidade técnica do empreendimento e a saúde financeira da empresa que pretende erigir a obra. A análise dos referidos documentos compete ao Registro de Imóveis responsável pela circunscrição onde o empreendimento será construído.
Realizado o registro do memorial da incorporação imobiliária e uma vez firmado o compromisso de compra e venda da unidade autônoma, o incorporador compromete-se a construir e entregar a obra no prazo estipulado no contrato. O adquirente, por sua vez, compromete-se a realizar o pagamento do preço, seja à vista ou, tal como ocorre na grande maioria dos casos, ao longo do tempo.
Embora o incorporador tenha prazo certo para o cumprimento de suas obrigações, a lei 4.591/64 permite-lhe fixar, no já referido memorial, um ‘prazo de denúncia6‘, no prazo decadencial de 180 dias a contar do registro da incorporação (artigo 33), dentro do qual é lícito exercer direito potestativo para se arrepender da incorporação (artigo 34, da lei 4.591/64), mesmo após a venda das unidades. Como direito potestativo que o é, o empreendedor o exerce sem pagamento de qualquer tipo de indenização ao adquirente. É uma clara exceção ao princípio da obrigatoriedade do contrato (pacta sunt servanda).
Assim, enquanto não transcorrido o prazo de arrependimento, o incorporador possui a seu favor verdadeiro termômetro para verificar o sucesso (ou não) do empreendimento, bem como refletir a respeito da viabilidade econômica das obrigações a que se incumbiu perante uma coletividade7.
Após dar início às vendas, percebendo que todas as unidades foram praticamente vendidas nos primeiros dias, o empreendedor deixa transcorrer o prazo de carência, porque há relativa segurança que haverá recursos para a construção da obra. Caso contrário, percebendo o insucesso das vendas e a incerteza quanto à viabilidade financeira da obra, pode manifestar expressamente o exercício do arrependimento e, ato contínuo, extinto o vínculo de forma ex tunc, devolve os valores recebidos aos adquirentes.
Como se nota, a Lei 4.591/64, desde a sua concepção, sempre conferiu a possibilidade de o incorporador, em prazo determinado, mesmo após a celebração do contrato, desistir do contrato firmado com o adquirente, quando previsto no memorial de incorporação o prazo de denúncia. Por óbvio, como se trata de direito potestativo unilateral, o empreendedor não precisa justificar a razão para “denunciar” o contrato, exercendo seu direito de arrependimento. Isso significa que mesmo sendo economicamente viável poderá haver a denúncia, assim como mesmo sendo inviável, pode o empreendedor assumir o risco e prosseguir com o negócio.
Em sentido contrário, até a edição da lei 13.786/2018, não havia nenhuma disposição na Lei de Incorporação Imobiliária que expressamente permitisse ao adquirente exercer o direito de arrependimento.
Na realidade, sendo uma relação de consumo, até poder-se-ia dizer que, com a edição do Código de Defesa do Consumidor (artigo 49), facultou-se ao adquirente, no prazo de sete dias a contar da assinatura do contrato, exercer o direito de arrependimento nas vendas celebradas fora do estabelecimento comercial do fornecedor8. Contudo, em razão de ausência de regra específica prevista na Lei 4.591/1964, a jurisprudência não era unânime a esse respeito, muitas vezes declarando, corretamente, a impossibilidade de resilição do contrato de compra e venda com fundamento naquele dispositivo legal9.
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*José Fernando Simão é livre docente, doutor e mestre pela Faculdade de Direito da USP. Professor Associado do Departamento de Direito Civil da Faculdade de Direito da USP. Segundo Secretário do IBDCONT. Presidente do Conselho Consultivo do IBRADIM. Advogado e parecerista.
**Alexandre Junqueira Gomide é doutorando e mestre em Direito Civil pela Faculdade de Direito da USP. Mestre em Ciências Jurídicas pela Faculdade de Direito da Universidade de Lisboa. Fundador e Diretor Regional do IBRADIM em SP. Advogado. Colaborador do Blog Civil & Imobiliário (www.civileimobiliario.com.br).
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1 Nesse sentido, a tradicional incorporadora Esser e João Fortes. As informações constam, respectivamente, aqui e aqui. Acesso em 20/5/2020.
2 Segundo dados recentes, a pandemia fecha 1,1 milhão de vagas de trabalho no Brasil, contabilizando, apenas no mês de abril, 860 mil demissões, pior resultado para o mês em 29 anos. Disponível aqui. Acesso em 29/5/2020. Ainda a esse respeito. Acesso em 20.05.2.020.
3 Nesse âmbito, verificar, por exemplo, inúmeros artigos escritos nas colunas Migalhas Edilícias e Migalhas Contratuais.
4 CHALHUB, Melhim. Incorporação imobiliária. 5ª ed. Rio de Janeiro: Forense, 2019. p. 8.
5 Segundo o conceito da própria lei 4.591/1964 (artigo 28, parágrafo único) é “a atividade exercida com o intuito de promover e realizar a construção, para alienação total ou parcial, de edificações ou conjunto de edificações compostas de unidades autônomas”.
6 Segundo Pontes de Miranda “a denúncia extingue a relação jurídica duradoura. […] Quem denuncia extingue relação jurídica negocial desde aquele momento, ou no futuro. […] A denúncia diz ‘aqui acaba a relação jurídica'” […] In: PONTES DE MIRANDA, Francisco Cavalcanti. Tratado de Direito Privado: Parte Especial. Tomo XXV. 2ª ed. Borsoi: Rio de Janeiro, 1.959, p. 294 e seguintes. Nos termos do Código Civil, a resilição unilateral, nos casos em que a lei expressamente o permita, opera mediante denúncia notificada à outra parte (artigo 473). É exatamente o presente caso. Havendo previsão na lei 4.591/64, o artigo 34 permite a resilição unilateral (mediante denúncia) para declarar que, a partir daquele momento, os efeitos do contrato foram cessados. Mas a resilição, novamente citando Pontes de Miranda, “só tem eficácia ex nunc: só resolve desde agora”. Assim o é, por exemplo, com relação ao contrato de locação, fornecimento de energia elétrica, água, gás, etc. Parece-nos mais apropriado dizer que a denúncia referida no artigo 34 da Lei 4.591/64, embora seja hipótese de resilição unilateral, representa verdadeiramente um direito de arrependimento que, conforme já exposto em outra oportunidade, extingue o contrato com efeitos retroativos. O exercício do direito conferido no artigo 34 retorna as partes ao statu quo ante, de modo que a extinção contratual opera como se o contrato nunca houvesse sido firmado e os valores recebidos pelo incorporador são devolvidos ao adquirente. A respeito do direito de arrependimento, verificar mais em: GOMIDE, Alexandre Junqueira. Direito de arrependimento nos contratos de consumo. São Paulo: Almedina, 2014. p. 95 e seguintes.
7 Quanto à justificativa do prazo de denúncia, Melhim Chalhub assevera “esses pressupostos de formação, execução e extinção do contrato de incorporação, que identificam como fonte de alimentação financeira o produto da alienação do seu próprio ativo, explicam e justificam a faculdade legalmente atribuída ao incorporador de valer-se de um prazo de carência, no qual poderá aquilatar, com razoável grau de precisão, a receptividade do produto ofertado, podendo, então, confirmar ou desistir da realização do empreendimento”. (CHALHUB, Melhim. A promessa de compra e venda no contexto da incorporação imobiliária e os efeitos do desfazimento do contrato. In: Revista de Direito Civil Contemporâneo, vol. 7, abr-jun/2016).
8 Art. 49. O consumidor pode desistir do contrato, no prazo de 7 dias a contar de sua assinatura ou do ato de recebimento do produto ou serviço, sempre que a contratação de fornecimento de produtos e serviços ocorrer fora do estabelecimento comercial, especialmente por telefone ou a domicílio.
9 A esse exemplo, vide “COMPROMISSO DE COMPRA E VENDA – Desistência do negócio – Rescisão por iniciativa do compromissário comprador – Arrependimento dentro de sete dias – Artigo 49 do Código de Defesa do Consumidor – Inaplicabilidade – Contrato firmado em estande de vendas – Possibilidade de o consumidor verificar e analisar, pessoalmente, o que está adquirindo – Ausência de provas de compra por impulso e do uso de técnicas contratuais abusivas – Ação de procedimento ordinário – Impossibilidade de formulação de pedido contraposto, previsto no CPC/1973, apenas para ações de procedimento sumário – Cobrança da multa que dependia de reconvenção não apresentada – Recurso provido em parte. (TJSP; Apelação Cível 1025804-25.2015.8.26.0196; Relator (a): Marcus Vinicius Rios Gonçalves; Órgão Julgador: 2ª Câmara de Direito Privado; Foro de Franca – 5ª Vara Cível; Data do Julgamento: 15/08/2017; Data de Registro: 16/08/2017).
Para você citar:
SIMÃO, José Fernando; GOMIDE, Alexandre Junqueira . Incorporação imobiliária: Resolução/revisão dos contratos de promessa de compra e venda em tempos de pandemia. Migalhas Contratuais.