Conforme esclarecemos na primeira parte de nossas reflexões, o Estatuto da Pessoa com Deficiência produz mudanças sensíveis na compreensão do direito civil. Prosseguimos a análise de suas consequências.
Incapacidade relativa daquele que não pode exprimir sua vontade
A segunda alteração é a seguinte “os que, mesmo por causa transitória, não puderem exprimir sua vontade”, atualmente absolutamente incapazes, passam para a categoria de relativamente incapazes (redação dada pelo Estatuto ao artigo 4º, III, do CC).
Aliás a nova redação do dispositivo é a seguinte:
III- aqueles que, por causa transitória ou permanente, não puderem exprimir sua vontade.
A alteração tem por consequência que, com a vigência do Estatuto, aquele que não puder exprimir sua vontade passa a ser assistido, ou seja, participa do ato juntamente com seu representante legal.
Pergunto: se uma pessoa estiver em coma induzido por questões médicas e, portanto, temporariamente sem discernimento algum, como pode ela realizar o ato com a assistência ou auxílio? A interdição que, por fim, declarar a pessoa relativamente incapaz será inútil em termos fáticos, pois o incapaz não poderá participar dos atos da vida civil.
O equívoco do Estatuto, neste tema, é evidente.
A mudança legislativa é extremamente prejudicial àquele que necessita de representação e não de assistência e acarreta danos graves àquele que o Estatuto deveria proteger.
Casamento válido
A terceira consequência para o Direito Civil diz respeito ao Direito de Família.
O Estatuto revoga o inciso I do artigo 1.548 do Código Civil que prevê ser nulo o casamento do “enfermo mental sem o necessário discernimento para os atos da vida civil”. Para fins de casamento, portanto, há um avanço. Não podem os deficientes serem alijados da formação de família por meio do casamento ou mesmo união estável.
Aliás, o Estatuto traz regra expressa quanto ao direito de família nos incisos do artigo 6º:
A deficiência não afeta a plena capacidade civil da pessoa, inclusive para:
I – casar-se e constituir união estável;
II – exercer direitos sexuais e reprodutivos;
III – exercer o direito de decidir sobre o número de filhos e de ter acesso a informações adequadas sobre reprodução e planejamento familiar;
IV – conservar sua fertilidade, sendo vedada a esterilização compulsória;
V – exercer o direito à família e à convivência familiar e comunitária; e
VI – exercer o direito à guarda, à tutela, à curatela e à adoção, como adotante ou adotando, em igualdade de oportunidades com as demais pessoas.
Nesta questão o Estatuto merece elogios. A conclusão de Flavio Tartuce é que o dispositivo gera, no plano familiar, uma expressa inclusão plena das pessoas com deficiência[1]. Não é toda a deficiência que retira o discernimento para a tomada de decisão de constituição de família e de sua formação. Contudo, há de se salientar, que mesmo com a mudança legal, a decisão de se casar é um ato de vontade. Se a vontade não existir em razão da deficiência, inexistente será o casamento.
Mesmo assim a questão não é simples. Se a vontade existir, mas for turbada, maculada pela deficiência, o casamento será válido, pois desaparece a enfermidade como causa de nulidade.[2]
Contudo, o Estatuto não altera a redação do artigo 1550 do Código Civil que trata da anulabilidade do casamento e que em seu inciso IV prevê:
“Artigo 1.550. É anulável o casamento:
IV – do incapaz de consentir ou manifestar, de modo inequívoco, o consentimento”;
Isso significa que o casamento do deficiente que for incapaz de consentir ou manifestar de modo inequívoco o consentimento pode ser anulável, mas não nulo. O Estatuto acrescenta um parágrafo segundo ao dispositivo:
Parágrafo 2º A pessoa com deficiência mental ou intelectual em idade núbia poderá contrair matrimônio, expressando sua vontade diretamente ou por meio de seu responsável ou curador.
O adjetivo “núbia” denota o total desconhecimento da língua portuguesa. Núbia é a região da África que historicamente teve conflitos com o Egito e hoje é parte dele.
O termo correto é “idade núbil”, ou seja, referente às núpcias. Novamente temos um problema na redação do parágrafo segundo acima transcrito: segundo o artigo 85 do Estatuto o curador do deficiente só atuará nos atos de natureza patrimonial e negocial, mas o parágrafo segundo que receberá o artigo 1550 do CC prevê que vontade de casar pode ser expressa pelo curador. Clara a contradição entre os dispositivos. A vontade é elemento essencial ao casamento e ninguém se casa senão por vontade própria. Admitir a vontade do curador como elemento suficiente para o casamento do deficiente é algo ilógico e contraria a pessoalidade do casamento, além de permitir fraudes perpetradas pelo casamento decorrente apenas da vontade do curador. O dispositivo deve ser interpretado restritivamente de acordo com a natureza personalíssima do casamento.
Como nota de direito intertemporal frisamos que caso tenha ocorrido um casamento de uma pessoa deficiente, sem discernimento para os atos da vida civil, antes da vigência do Estatuto, este casamento nasceu nulo por afronta ao inciso I do artigo 1548 do CC e não se torna “válido” pela mudança legislativa. Prevalece a lei do momento da celebração do casamento.
Curatela de capazes
O Estatuto inova nesta matéria. Admite, por força do artigo 84, parágrafo 1º, a interdição de pessoa capaz: “quando necessário, a pessoa com deficiência será submetida à curatela, conforme a lei”.
A curatela de pessoa capaz é algo inusitado na história e tradição do Direito brasileiro. A orientação do Estatuto é clara: mesmo com a curatela, não temos uma pessoa incapaz.
Como afirma Pablo Stolze, “temos, portanto, um novo sistema que, vale salientar, fará com que se configure como “imprecisão técnica” considerar-se a pessoa com deficiência incapaz. Ela é dotada de capacidade legal, ainda que se valha de institutos assistenciais para a condução da sua própria vida”.[3]
Logo, com a vigência do Estatuto teremos uma nova categoria de pessoas capazes: os capazes sob curatela.
No sistema atual, o curador representa os absolutamente incapazes e assiste os relativamente incapazes.
Com a vigência do Estatuto, qual será a função do curador de pessoa capaz?
Notas conclusivas
O Estatuto é fruto de um momento histórico em que há, sob o argumento de se evitar discriminações, uma “negação” injustificada das diferenças o que acaba por gerar o abandono jurídico de uma importante parcela da população que dela necessita.
Se em termos gerais o Estatuto é positivo, inclusivo e merece nosso aplauso, em termos de direito civil temos problemas incontornáveis e atecnias seríssimas.
Se o deficiente é capaz e estiver sob curatela, quais serão as funções do curador? Haverá representação ou assistência de pessoa capaz? Aplicam-se a tais pessoas as regras referentes aos incapazes?
O Estatuto não indica a função do curador do deficiente. Duas são as possíveis leituras. Pela primeira, o deficiente sob curatela pratica pessoalmente os atos da vida civil. Esta leitura é equivocada, pois se assim fosse, por que haveria de se nomear um curador ao deficiente?
Uma segunda leitura indica que o curador de pessoa capaz deverá representa-lo ou assisti-lo. Contudo o desafio é exatamente saber se o curador deverá representar o deficiente ou apenas assisti-lo, pois como se trata de pessoa capaz, não há no sistema uma resposta a essa pergunta.
O artigo 85 do Estatuto não responde esta questão:
Artigo 85. A curatela afetará tão somente os atos relacionados aos direitos de natureza patrimonial e negocial.
§ 1º A definição da curatela não alcança o direito ao próprio corpo, à sexualidade, ao matrimônio, à privacidade, à educação, à saúde, ao trabalho e ao voto.
§ 2º A curatela constitui medida extraordinária, devendo constar da sentença as razões e motivações de sua definição, preservados os interesses do curatelado.
Da leitura do texto, parece que caberá ao juiz definir se o curador do deficiente, que prossegue sendo capaz, deverá representa-lo ou assisti-lo. De qualquer forma, a limitação do artigo 85 é clara, ou seja, a curatela só caberá em questões patrimoniais.
Cabendo ao curador representar ou assistir o deficiente, qual é a consequência de o deficiente praticar o ato sem assistência ou representação? Em tese, pela boa técnica a resposta seria: nenhuma, pois ele é pessoa capaz e o ato é válido.
Contudo, essa resposta torna a curatela do deficiente inútil e não o protege como deveria. Afinal, se curatela há é em razão de uma necessidade. Assim, haverá aplicação analógica das disposições dos artigos 166, I e 171, I, bem como do artigo 310 aos deficientes capazes, sob curatela. Nessas hipóteses a vontade do deficiente capaz não será suficiente.
O contrato assinado exclusivamente por deficiente capaz, mas sob curatela, será nulo se o juiz fixar em sentença que a o curador o representa (aplicação do art. 166, I do CC por analogia) ou anulável se fixar que o assiste (aplicação do art. 171, I do CC por analogia)[4].
A quitação dada pelo credor deficiente capaz sob curatela será ineficaz e não liberará o devedor (aplicação do artigo 310 do CC por analogia).
Aplicação analógica de regras que cuidam da invalidade é solução atécnica e contrária ao Direito. Se a regra é a validade dos negócios jurídicos, as invalidades são excepcionais não se admitindo analogia. Entretanto, não vejo outra solução em razão do problema jurídico criado pelo próprio Estatuto. Se não fosse esta a solução, a consequência seria a seguinte: o deficiente capaz sob curatela pode praticar validamente todo e qualquer ato da vida civil e a curatela, portanto, seria completamente inútil.
Contudo, não vejo como aplicar as regras pelas quais a prescrição e a decadência não correm contra o absolutamente incapaz para o deficiente capaz sob curatela. Aqui não se trata de ato ou negócio jurídico que exija a participação de curador. É proteção do incapaz e apenas dele, e não de pessoas capazes sob curatela. Correr prescrição ou decadência independe de vontade do deficiente sob curatela.
O Estatuto gera, ainda, um outro problema, pois pela atual redação do artigo 1.767 do Código Civil temos o seguinte:
Artigo 1.767. Estão sujeitos a curatela:
I – aqueles que, por enfermidade ou deficiência mental, não tiverem o necessário discernimento para os atos da vida civil;
II – aqueles que, por outra causa duradoura, não puderem exprimir a sua vontade;
III – os deficientes mentais, os ébrios habituais e os viciados em tóxicos;
IV – os excepcionais sem completo desenvolvimento mental;
V – os pródigos.
Com a vigência do Estatuto a redação passa a ser a seguinte:
Artigo 1.767. Estão sujeitos a curatela:
I – aqueles que, por causa transitória ou permanente, não puderem exprimir sua vontade;
II – (revogado);
III – os ébrios habituais e os viciados em tóxicos;
IV – (revogado);
V – os pródigos.
A pergunta que surge é: se o deficiente puder exprimir sua vontade, mas tiver limitações as quais geram necessidade de curatela (previsão do artigo 85 do Estatuto) em qual hipótese do artigo 1.767 se enquadrará esta curatela? A resposta é nenhuma, pois a nova redação do artigo 1.767, com a vigência do Estatuto, não dialoga com a própria previsão do Estatuto de existência de curatela do deficiente.
Se a pessoa, por causa transitória ou permanente, não puder exprimir sua vontade, a sentença deve declará-la relativamente incapaz, tendo o curador a mera função de assistente?
A resposta é negativa. Contrariando o texto expresso do Código Civil, deve o juiz declarar a incapacidade absoluta para permitir a representação. A solução da assistência é inútil e não atende ao interesse do incapaz que estará impedido de praticar qualquer ato da vida civil.
A solução é ignorar a mudança legislativa, sob pena de se concluir pelo desamparo total de parte da população e inviabilizar sua própria subsistência. Não é necessário que se invoque o princípio da dignidade da pessoa humana.
Basta o raciocínio lógico: a incapacidade existe para proteger o incapaz. A interpretação das regras é sempre garantir a integral ou maior proteção para quem dela necessita. Se estivermos diante de pessoa que não pode exprimir sua vontade, a incapacidade é absoluta por construção histórica e lógica.
Em sentido contrário, Atalá Correia entende que “caso o quadro legislativo não se altere, será razoável tolerar uma hibridização de institutos, para que se admita a existência de incapacidade relativa na qual o curador representa o incapaz, e não o assiste. Entendida a questão de maneira literal, a interdição de pessoas teria pouco significado prático”.[5]
Quem tem legitimidade para promover o processo que define a curatela de pessoa capaz?
Note-se que não se fala de interdição, pois essa só se refere a incapazes. Daí temos a nova redação que o Estatuto dá ao caput artigo 1768 do Código Civil, suprimindo a palavra interdição e substituindo-a por “processo que define os termos da curatela”:
Artigo 1.768. O processo que define os termos da curatela deve ser promovido:
I – pelos pais ou tutores;
II – pelo cônjuge, ou por qualquer parente;
III – pelo Ministério Público;
IV – pela própria pessoa.
Os três primeiros incisos não sofreram alteração. O dispositivo ganha um quarto inciso, pois admite-se a auto-interdição.
O problema todo que surge é o seguinte. O novo CPC (Lei 13.105/05) expressamente revoga o artigo 1.768 do Código Civil (art. 1.072, II) que é alterado pelo Estatuto.
Isso porque, o novo CPC, em seu artigo 747 prevê quem pode promover a interdição:
Artigo 747. A interdição deve ser promovida:
I – pelo cônjuge ou companheiro;
I – pelos parentes ou tutores;
III – pelo representante da entidade em que se encontra abrigado p interditando;
III – pelo Ministério Público.
Pensemos na vacatio de ambas as leis. A vacatio legis do Estatuto é de 180 dias contados a partir da publicação (6 de julho de 2015) e a vacatio do novo CPC é de 1 ano (publicação em 17 de março de 2015).
A conclusão que se chega é que a vida do artigo 1768 do Código Civil, com a redação dada pelo Estatuto será curtíssima. Em janeiro de 2016 entra em vigor o Estatuto e prevalece a nova redação do art. 1768 que será revogado em março de 2016, prevalecendo, a partir de março, o artigo 747 do novo CC.
Entretanto, o artigo 747 ainda utiliza a expressão “interdição” e não “processo que define os termos da curatela”. Sendo os deficientes capazes, a partir da vigência do novo CPC teremos outra novidade: a interdição de capazes, ou seja, dos deficientes sob curatela.
Essas linhas, longe de esgotarem as questões, são um convite à rteflexão.
[1] http://www.migalhas.com.br/FamiliaeSucessoes/104,MI224217,21048-Alteracoes+do+Codigo+Civil+pela+lei+131462015+Estatuto+da+Pessoa+com
[2] É essa a opinião de Flávio Tartuce: “Filia-se totalmente à alteração, pois o sistema anterior presumia que o casamento seria ruim para o então incapaz, vedando-o com a mais dura das invalidades. Em verdade, muito ao contrário, o casamento é via de regra salutar à pessoa que apresente alguma deficiência, visando a sua plena inclusão social”
http://www.migalhas.com.br/FamiliaeSucessoes/104,MI224217,21048-Alteracoes+do+Codigo+Civil+pela+lei+131462015+Estatuto+da+Pessoa+com
[3] http://jus.com.br/artigos/41381/o-estatuto-da-pessoa-com-deficiencia-e-o-sistema-juridico-brasileiro-de-incapacidade-civil
[4] Segundo Atalá Correia, “o dilema desdobra-se, entretanto, em outro. Haveria aí, nessa situação “sui generis”, nulidade ou mera anulabilidade? Como se sabe, o regime de incapacidade relativa, leva à anulabilidade. Por outro lado, quem haveria de manifestar a vontade para, antes do prazo decadencial, impedir a convalidação? Acredito, nesse campo de primeiras reflexões, que deva prevalecer o regime de nulidade, mais benéfico ao deficiente” (http://www.conjur.com.br/2015-ago-03/direito-civil-atual-estatuto-pessoa-deficiencia-traz-inovacoes-duvidas)
[5] http://www.conjur.com.br/2015-ago-03/direito-civil-atual-estatuto-pessoa-deficiencia-traz-inovacoes-duvidas