Foi com entusiasmo renovado que recebi do Professor Fernando Araújo os convites para eventos acadêmicos que ocorreriam em julho em Portugal. O primeiro deles a respeito de bioética e meu tema seria Testamento Vital ou Diretivas Antecipadas.
O segundo era um evento único: palestrar no Curso de Verão promovido pelo Centro de Investigação de Direito Privado da Faculdade de Direito da Universidade de Lisboa que ocorreu entre 23 de junho e 14 de julho.
O terceiro era uma conferência na Ordem dos Advogados da cidade do Porto também sobre Direito dos Animais.
Tenho afirmado repetidas vezes que meus períodos em Lisboa têm sido de muito aprendizado e estudo. Aliás, em Lisboa sou aluno muitas vezes e volto aos bancos escolares para estudar temas ímpares e por mim desconhecidos.
Devo dizer que esse curso de verão, do qual assisti a diversas aulas, foi um marco em Portugal. O primeiro com a temática exclusiva do Direito dos Animais. Contou com veterinários, ativistas, filósofos, professores das mais diversas áreas do direito etc.
As presentes linhas fazem parte desse rico aprendizado.
As Ordenações Manuelinas e Filipinas já continham regras de direito peal a respeito da proteção da propriedade que recai sobre o animal. As regras visavam à proteção da propriedade e não do animal si, mas indiretamente acabam por proteger o animal. Assim dispunham as Ordenações Manuelinas do Século XVI:
“Da pena que haverá o que matar bestas ou cortar árvores de fruito. E que tanto que o guado se decepar se esfole logo. Qualquer pessoa que matar besta de qualquer sorte que seja, ou boi ou vaca alheia por malícia, se for na Villa, ou em qualquer casa, pague a estimação em dobro e se for no campo pague em tresdobro e tudo para seu dono” (Livro V, Título C)
Já as Filipinas de 1603 dispunham:
“Dos que compram colmeias para matar as abelhas e dos que matam bestas. E a pessoa que matar besta, de qualquer sorte que seja, ou boi ou vaca alheia por malícia, se for na Villa ou alguma casa, pague a estimação em dobro e se for no campo pague em tresdobro, e tudo para seu dono, e sendo o dano de 4 mil réis, seja açoitado e degradado quatro anos para África. E se for de valia de trinta cruzados e daí para cima será degredado para sempre para o Brasil”. (Livro V, Título LXXVIII)
Note-se que a pena de degredo perpétuo para o Brasil se aplicava em razão do maior valor do animal. Já se de menor valor, a pena era de degredo temporário para África. Isso demonstra que a proteção era destinada diretamente ao proprietário e indiretamente ao próprio animal. No mínimo, a lei penal tem função dissuasória, ou seja, evita-se a crueldade animal em razão do risco de degredo.
Assim, em matéria penal não são novas as regras que tipificam como crime a morte ou a crueldade contra animais.
Curioso se notar que na Idade Média, os animais não só contavam com a proteção decorrente da propriedade das coisas, mas também tinham personalidade processual para serem autores e réus de demandas.
No Século XIV, os habitantes da cidade de Coire, propuseram demanda contra larvas de cabeça negra e corpo branco que, no início do inverno, atacavam as raízes das plantas causando sua morte. As larvas foram citadas por edital (três editais consecutivos) e lhes foi concedido um advogado para sua defesa. Ao final, as larvas foram consideradas inocentes, pois como criaturas de Deus, não podiam ser privadas de sua subsistência.
A decisão é interessante, pois o direito à vida dos animais se sobrepôs ao direito dos seres humanos às plantações e sua própria alimentação.
Em 1451 houve um processo contra as sanguessugas do Lago de Berna. Algumas delas foram capturadas e postas fisicamente diante do Tribunal. O Bispo de Lausane intimou as sanguessugas presentes e ausentes em, no prazo de três dias, abandonarem o lago que habitavam. Para demonstrar a seriedade da decisão, alguns dois animais foram imediatamente executados.
Como sua ordem não foi obedecida, o Bispo se dirigiu ao lago e proferiu a pena: “Em nome de Deus Todo-Poderoso, de toda a corte celestial, da Santa Igreja Divina, eu vos amaldiçoo onde quer que estejais e sereis malditas vós e vossas descendentes até desapareceres de todos os lugares”.
O processo se revela interessante pois demonstra que o direito penal aplicado aos animais seguia os mesmos procedimentos daquele aplicado aos humanos e tinha idêntica função: dissuadir os demais a praticarem os atos tipificados.
Também interessante os processos ocorridos no Século XVI (anos de 1580) contra os pássaros gorgulhos que destruíam as vinhas de uma aldeia. Na primeira ação, os pássaros foram vitoriosos. Na segunda, os camponeses, percebendo que seriam novamente derrotados, oferecem aos gorgulhos um terreno alternativo para sua residência, com árvores, arbustos e pastagens. O advogado dos animais, após realizar visitas ao lugar sugerido, recusa a proposta pois entendeu que o terreno era estéril.
Repare-se que ao se falar em acordo, ou seja, em transação, havia uma percepção que os animais tinham vontade e interesses, logo tinham algo próximo de personalidade. As penas confirmam essa percepção.
Se os animais fossem considerados instrumento do demônio, eram excomungados ou amaldiçoados. Isso pode parecer estranho atualmente, mas o animal, então, era considerado possuidor de alma e, portanto, de alguma forma consciente da noção de mal e de bem.
Para você citar:
SIMÃO, José Fernando. Direito dos animais: algumas notas históricas. Jornal Carta Forense, 01 ago. 2017.