I – Provimento 56 do CNJ – Garantia de cumprimento da vontade do morto
O Conselho Nacional de Justiça editou em 14 de julho, ou seja, há pouco mais de uma semana, ato que dispõe sobre a “obrigatoriedade de consulta ao Registro Central de Testamentos on-line para processar os inventários e partilhas judiciais” e extrajudiciais.
O Provimento 56 pretende exigir que se verifique a existência de testamentos públicos e particulares como requisito prévio aos procedimentos de inventário judicial ou à lavratura de escritura pública (extrajudicial). A questão de fundo é o respeito à vontade do morto que pode ter feito um testamento que permanece desconhecido ou mesmo fora ocultado por alguém.
É por isso que o artigo 1º do provimento exige que seja acessado o Registro Central de Testamentos on-line (RCTO) para se buscar a existência de testamentos. O artigo 2º exige então a juntada de certidão negativa que declare a inexistência de testamentos, documento este expedido pela Central Notarial de Serviços Compartilhados – que gerencia o RCTO.
Em suma, a nova regra, bem redigida e de excelente valia, garante o cumprimento do testamento público ignorado pelos herdeiros ou dolosamente ocultado para que a vontade do morto não atinja seu desiderato.
Vozes poucas se levantaram para criticar o procedimento como se esse fosse “uma nova e desnecessária burocracia” para dificultar a vida das pessoas. Os argumentos trazidos foram: “trata-se de formalismo com implicação financeira às pessoas que não tem dinheiro para pagar emolumento público” e “não há como se provar a existência de testamento particular, logo se deveria exigir o registro deste ou mesmo acabar logo com essa modalidade para garantir cumprimento da vontade do morto”.
II – Direito de Família e casuística
Não tem sido infrequente ouvir em palestras e mesmo ler certos textos mais ligeiros que afirmam que no Direito de Família não se pode falar em certezas, ou seja, que haveria uma relativização absoluta do sistema. Ainda, que a casuística é a regra no sistema e as certezas exceções.
Essas opiniões apressadas revelam que aquele que as professa está negando ao Direito de Família sua existência como sistema jurídico e ao mesmo tempo se demitindo da função de ensinar, para qual se exige o caráter científico. Não é verdade que o sistema hoje é o da casuística e que não há certezas.
Os romanos construíram, a partir do caso concreto, um direito casuístico do qual se extraíram as bases para, no século XIX, os alemães desenharem categorias jurídicas. A construção da categoria é uma conquista científica, pois garante a correta compreensão do sistema e sua aplicação uniforme. O inseguro é certamente injusto.
O fato de o Direito de Família ter sido relido pelos preceitos constitucionais e a doutrina ter contribuído com institutos “novos”, que tomaram corpo e se consolidaram, não significa que o Direito de Família responde à sociedade com “depende do caso concreto”.
Essa antirresposta é a falência do sistema como um todo e abre espaço para despautérios e injustiças. O conceito de afeto, por exemplo, não é vale-tudo. Aliás, parte grande da doutrina o constrói de maneira científica.[1]
III – Testamento público e particular: compreensão das diferenças
Silvio Rodrigues, meu professor de Direito Civil[2], ensinava que cada modalidade de testamento tem suas vantagens e desvantagens.
O testamento público tem a vantagem de não se perder, pois o instrumento consta do Livro do Tabelionato de Notas. Tem, ainda, maior rigor na observância da vontade do testador, pois é feito perante tabelião que assegura a liberdade deste e o cumprimento das solenidades prescritas em lei. É a forma mais utilizada no Brasil. Há um inconveniente, pois a vontade é conhecida pelo tabelião e pelas duas testemunhas. Em tese, qualquer pessoa tem acesso ao conteúdo. O elemento segurança o caracteriza[3].
O testamento particular, feito pelo testador e lido em voz alta na presença de três testemunhas, garante que seu conteúdo permaneça inacessível, pois a cédula permanece com o testador ou pessoa de sua confiança. Tem por vantagem o fato de sequer se saber de sua existência, já que a lei não exige, corretamente, seu registro. É forma pouquíssimo utilizada no Brasil. Há o risco de se perder a cédula, desta ser destruída e a vontade do morto nunca ser cumprida. O elemento sigilo, não absoluto, o caracteriza.
Em suma, é a autonomia privada que marca todo o Direito Civil; do testador que permite a escolha entre uma ou outra forma de testar. Não há razão para se aventar o “registro do testamento particular” nem sua retirada do sistema. É mais simples que se dê ao testador o direito de escolha, sabendo ele das vantagens e desvantagens das várias formas de testar.
A crítica à “burocracia” contida no Provimento 56 indica desconhecimento do tema. Garantir o cumprimento da vontade do morto por meio de uma simples informação contida no sistema não é burocracia. É respeito ao testamento, respeito ao testador e respeito ao cidadão brasileiro.
Já há em São Paulo regras expressas do Tribunal de Justiça que determinam que o Colégio Notarial deve informar a existência de testamentos.Sobre custos, a questão é de política pública. Não fala a resolução em cobrança ou custos para obtenção da certidão. Há várias certidões negativas obtidas virtualmente sem qualquer custo atualmente.
Se custos houver, que seja franqueada gratuitamente para aqueles que não podem pagar. Contudo, o fato de existirem custos (que certamente serão razoáveis) não reduz a importância nem a excelência da ideia.
IV – A culpa é da mulher do juiz
As críticas à resolução são precipitadas e infundadas. O conteúdo é adequado ao sistema e a doutrina especializada aplaudirá a iniciativa. Infelizmente, se adotarmos a premissa de que Direito de Família é casuística; que não existem regras e sim o caso concreto; que testamento particular deve ser registrado; que a obtenção de certidão é cara, logo a regra é ruim, a doutrina se demite de sua função de construir ciência e colaborar com a construção de um Direito de Família melhor.
E, para concluir, depois desse discurso vazio, vêm as críticas às decisões judiciais. A culpa é sempre do juiz “que não sabe julgar, que deveria ler melhor o processo, que não aplica a lei, porque cuida da casuística”.
É hábito do ser humano atribuir ao outro suas próprias culpas. Gil Vicente, no Auto da Barca do Inferno, na longa discussão entre o magistrado que em vida recebia subornos e o Diabo relata, de maneira muito jocosa, tal fato:
Juiz – E aonde vai o batel?
Diabo – No inferno vos poremos.
Juiz – Como? À terra dos demos há de ir um corregedor?
Diabo – Santo descorregedor, embarcai e remaremos.
Juiz – Non est de regulae iuris.[4] (…)
Diabo – E as peitas dos judeus que vossa mulher levava?[5]
Juiz – Isso eu não no tomava, eram percalços seus, não são peccatus meus, peccavit uxore mea[6]
Em suma, a culpa é sempre do outro!
[1] Por todos, Ricardo Calderón, “O princípio da afetividade no Direito de Família”.
[2] Por meio dos livros e não de aulas.
[3] Há estados em que, por força de regras dos tribunais de Justiça, a certidão do testamento não pode ser dada livremente.
[4] “Não é a regra da lei”. O juiz pretende discutir com o Diabo a lei que se aplica ao caso concreto. No fundo, quer regra própria por se juiz. É a casuística.
[5] A mulher recebia como intermediária do marido. Era simples receptora do ilícito.
[6] Esses pecados não são meus, diz o juiz, “são pecados da minha mulher”.