“Sic transit gloria mundi”[1]
Qual não foi minha surpresa quando recentemente li pelas redes sociais que haveria uma “obrigação de não fazer transeunte”. O assombro de nunca ter ouvido tal nome se deve à leitura insuficiente do autor dessa coluna ou se trata de dar nomes novos a velhos institutos?
Bem, a melhor solução é ler os clássicos.
I – Leitura dos Clássicos e de Pontes de Miranda.
Orlando Gomes pode ser citado em duas passagens distintas. Primeiro afirma que as prestações negativas podem se constituir numa abstenção ou ato de tolerância. Assim, exige-se do devedor uma omissão. Na sequência, ao falar do tempo de realização da prestação, utiliza o termo prestação contínua e prestação instantânea ou prestação transitória ou isolada. Cita Von Thur para justificar a terminologia. Utiliza o termo “transitória” e não se menciona “transeunte”.[2]
Silvio Rodrigues define a obrigação de não fazer como aquela em que o devedor assume o compromisso de se abster de um fato que poderia praticar, não fosse o vínculo que o prende. Não traz distinção quanto ao tempo de realização da prestação.[3] Não se menciona “obrigação transeunte”.
Silvio Venosa explica que a imposição de uma obrigação negativa determina ao devedor uma obrigação que pode ou não ser limitada no tempo. Ora ela se apresenta como um dever de abstenção, ora como dever de tolerância[4]. Não se menciona “obrigação transeunte”.
Washington de Barros Monteiro denomina a obrigação pelo termo latino: ad non faciendum. Afirma que a obrigação se apresenta sob formas mais diversas: obrigação de abster-se, obrigação de sofrer, obrigação de tolerar ou suportar atividade alheia e obrigação de não dar. Não falta objeto às obrigações de não fazer, pois a abstenção é também um fato, porque sujeita a pessoa a determinado comportamento.[5] Não se menciona “obrigação transeunte”.
Caio Mario da Silva Pereira ao mencionar a obrigação de não fazer afirma que a prestação é um non facere. Seu cumprimento está na constância ou sucessividade de abstenções. Trata-se de permanente abstenção, mas não de abstenção eterna. Escoado o prazo contratual o devedor recupera sua liberdade[6]. Não se menciona “obrigação transeunte”.
Carlos Roberto Gonçalves ao trabalhar as obrigações de execução instantânea conclui que sua realização se esgota em um momento. Não se menciona “obrigação transeunte”.
Maria Helena Diniz afirma que é uma obrigação negativa visto que o devedor se conserva numa situação omissiva. [7] A autora reconhece em passagem posterior que a obrigação momentânea é sinônima de instantânea, transitória ou transeunte, pois se consuma em um único momento (quae unico actu perfinciuntur)
Depois de ler os Manuais que marcaram a segunda metade do Século XX em que apenas Maria Helena Diniz utiliza o termo “transeunte” como sinônimo de transitório resolvi buscar a linguagem de Pontes de Miranda.
Ao explicar as obrigações de não fazer, o mestre explica que enquanto há omissão, o credor não é ofendido, porém não há satisfação. A satisfação só se dá quando cessa o dever de omissão, sem ter sido infringido. Não há ação no omitir, nem há renúncia tácita ou expressa.[8]
Sobre o tempo da prestação, Pontes de Miranda afirma que a prestação é transitória ou duradoura. Punctual é a prestação que se tem por feita no instante que se faz ou se omite. Há prestações punctuais de abstenção, posto que[9], na maioria das espécies, prestações de omissão sejam prestações duradouras[10].
Pontes de Miranda não se utiliza do termo “transeunte”.
II – Da obrigação punctual, transitória ou de cumprimento instantâneo.
A obrigação, seja de dar, fazer ou não fazer, que tenha cumprimento instantâneo ou imediato é chamada de transitória ou punctual para se opor às obrigações de longa duração, que se protraem no tempo.
Transitório, do latim transitoriu, é adjetivo que indica de pouca duração, que passa, passageiro, efêmero, sujeito à morte, mortal.[11] Tem origem no verbo transire, passar de um lugar a outro[12].
Transeunte, do latim transeunte, é o que passa, que vai andando ou passando, indivíduo que vai andando ou passando, passante, caminhante, viajante.[13]. É verdade que o Houaiss utiliza transeunte, em uma de suas definições, como sinônimo de aquilo que não permanece, transitório, que está de passagem. Do latim, transeuns, untis, passar de um lugar a outro[14].
Claro está que, pela etimologia latina e pelo uso corrente vernacular, a obrigação é transitória, pois logo se extingue. É passageira como sinônimo de fugaz. Transeunte não é adjetivo adequado para classificar a obrigação, pois no uso corrente indica passagem daquele que está andando. Não indica que logo desaparecerá, não tem o sentido de fugaz, ainda que essa acepção seja admitida pelo Houaiss.
É por essa razão que a doutrina clássica, utilizando o vernáculo de maneira mais adequada e precisa, não se menciona obrigação transeunte e sim transitória, em que pese a base etimológica semelhante dos adjetivos.
O uso de “obrigação transeunte” é pernóstico, esnobe e pouco claro. É a velha mania de se dar um nome diferente a um instituto historicamente consagrado: “obrigação instantânea”.
[1] “Assim passa a glória do mundo”.
[2] Obrigações, Forense, 8ª edição, p. 51.
[3] Parte Geral das Obrigações, v. 2, Saraiva, 2002, p. 41.
[4] Direito civil, 13ª edição, Atlas, v. 2, p. 86.
[5] Curso de Direito Civil, 4º volume, 1999, Saraiva, p. 104.
[6] Instituições de Direito Civil, v. 2, 21ª edição, 2007, p. 75.
[7] Teoria Geral das Obrigações, 29ª edição, 2014, p. 130/154..
[8] Tratado de Direito Privado, tomo 22, par. 2699, Borsoi, p. 115.
[9] O domínio do vernáculo é impecável: “posto que” é locução adversativa, sinônima, portanto, de contudo ou embora.
[10] Tratado de Direito Privado, tomo 22, par. 2689, Borsoi, p. 63.
[11] Novo Dicionário Aurélio, 4ª edição, p. 1978.
[12] Houaiss, p. 2752.
[13] Novo Dicionário Aurélio, 4ª edição, p. 1976.
[14] Houaiss, p. 2750.