Multa contratual e um dilema: é possível ao juiz reduzir a multa sem pedido das partes?
Em nossa última coluna da Carta Forense fizemos algumas considerações a respeito do conceito de cláusula penal, suas espécies, e limitações impostas pelo Código Civil e algumas leis especiais.
Cabe, agora, responder a pergunta que foi lançada em nosso grupo virtual de debates jurídicos coordenado pelo Prof. Flávio Tartuce: a redução da cláusula penal pelo juiz, nos termos do art. 413 do Código Civil, deve se realizar de ofício?
A questão passa pela redação do artigo 413 do atual Código Civil que, contrariamente ao que dispunha o art. 924 do Código Civil de 1916 utiliza o verbo “dever” e não “poder”. Comparemos os dispositivos
Código Civil de 1916 | Código Civil de 2002 |
Art.924. Quando se cumprir em parte a obrigação, poderá o juiz reduzir proporcionalmente a pena estipulada para o caso de mora, ou de inadimplemento. | Art. 413. A penalidade deve ser reduzida eqüitativamente pelo juiz se a obrigação principal tiver sido cumprida em parte, ou se o montante da penalidade for manifestamente excessivo, tendo-se em vista a natureza e a finalidade do negócio. |
Pela redação do antigo Código Civil, havia para o juiz uma faculdade: reduzir ou não a cláusula quando a obrigação tivesse sido cumprida em parte. Fato é que para se evitar enriquecimento injustificado, a redução acabava ocorrendo como regra.
Imaginemos um contrato de locação prevendo que, na hipótese de o inquilino desocupar o imóvel antes do término do prazo avençado, ele paga a multa correspondente a três aluguéis. Trata-se de cláusula pena compensatória. Se a multa foi avençada para a hipótese de descumprimento total das prestações, o cumprimento parcial exige do magistrado a redução do valor da pena. Se o locatário aluga uma casa, por 30 meses, e lá permanece um mês, desocupando o imóvel, sua multa não pode ser igual àquela imposta ao locatário que permanecer por 29 meses.
A redação do art. 413 impõe ao juiz a redução da cláusula penal. “A penalidade deve ser reduzida”. Isso porque se a lei deixasse a critério do julgador a redução, em situação extrema, a decisão poderia ser fonte de enriquecimento injustificado e de quebra da isonomia. Imaginemos dois locatários que permanecem por 15 meses nos imóveis locados. Ambos pedem a redução da multa pela metade. Como se tratava de aparente faculdade do juiz a redução da pena, um poderia ter seu pleito atendido e outro não. Apesar de idêntica situação, a discricionariedade do julgador poderia gerar quebra da isonomia.
A dúvida consiste em saber se a norma gera uma imposição ao juiz de reduzir a cláusula quando e se provocado pela parte ou se o dever existe independentemente da provação do interessado.
O tratamento da doutrina merece nota. Pablo Stolze e Rodolfo Pamplona explicam em seu Novo Curso de Direito Civil que o verbo “dever” impõe ao juiz a redução da pena convencional, sob pena de uma das partes restar excessivamente onerada (v. II, 12ª edição, p. 366). Não informam se a redução ocorre independentemente de provocação ao juiz.
Cristiano Chaves de Farias e Nelson Rosenvald não enfrentam diretamente a questão. Entendem que “se a impossibilidade de cumprimento se der após o percurso de boa parte do contrato, porém, será de bom alvitre que o magistrado reduza a multa em razão ao tempo de vigência da relação” (Direito das obrigações, 5ª ed, p. 603).
Tatiana Magalhães Florence, em artigo dedicado ao estudo da cláusula penal, conclui que o verbo “dever” gera o seguinte efeito: “com isso resta definitivamente afastada a possibilidade de as partes dispensarem a apreciação do Judiciário a respeito da redução da penal convencional”. Não trata da redução de ofício (Obrigações, Coordenador Gustavo Tepedino, p. 529).
Há na doutrina uma afirmação peremptória de Rubens Hideo Arai que “agora a redução é de ordem pública e deve ser aplicada de ofício pelo juiz diante do caráter cogente da norma” (Obrigações, Coordenação Renan Lotufo e Giovanni Ettore Nanni, p. 746). Também Carlos Roberto Gonçalves (Direito Civil brasileiro, v. 2, 10ª edição, p.419):
“A disposição é de ordem pública, podendo a redução ser determinada de ofício pelo magistrado”
Carlos Alberto Dabus Maluf, ao atualizar a obra de Washington de Barros Monteiro, secunda a posição de redução de ofício com base no Enunciado 356 do CJF (Curso de Direito Civil, 38ª edição, p. 400). O Enunciado temo seguinte teor:
“Nas hipóteses previstas no art. 413 do Código Civil, o juiz deverá reduzir a cláusula penal de ofício.”
O Enunciado em questão foi aprovado por apertada maioria. Antes da mudança do Regimento das Jornadas, bastava um único voto a mais para a provação de um Enunciado. Na época, forte foi a resistência à aprovação por uma questão simples: tratar o contrato por adesão e o contrato paritário como idênticos para fins da regra é algo que não pode ocorrer. Ademais, há ainda a distinção entre os contratos civis e os empresariais. Nestes últimos, novamente, a redução de ofício da cláusula penal é o que deve efetivamente ocorrer?
É em razão das especificidades de espécies de contrato que a questão merece melhor e mais profunda reflexão. A justificativa do enunciado é que a redução de ofício da cláusula penal decorre da função social do contrato que é norma de ordem pública nos termos do art. 2035 do Código Civil.
Novamente, a função social retorna como justificativa para a excessiva intervenção judicial sobre o conteúdo do contrato, sem que haja balizas mínimas a justificar a intervenção. Exemplifiquemos. Um contrato entre uma montadora de automóveis e uma fabricante de pneus em que a última descumpre parcialmente o contrato e a primeira promove a cobrança da cláusula penal. Sem requerimento de qualquer das partes, sem que haja pedido formulado, o juiz se intromete no programa contratual, sob fundamento da função social, para reduzir a multa pactuada. Esta intervenção, em um contrato firmado por hipersuficientes, é absolutamente descabida. Os contratos empresariais são, normalmente, amplamente debatidos contando a empresas com um corpo jurídico altamente qualificado. Não há qualquer tipo de vulnerabilidade a ensejar a intervenção do juiz sobre o conteúdo do contrato. A redução é uma afronta à autonomia privada.
Por outro lado, imaginemos um contrato por adesão em que uma das partes, o consumidor, assume multa evidentemente excessiva por imposição do fornecedor. Neste caso, em favor do vulnerável, deve o juiz efetivamente reduzir, ainda que não pedido, a cláusula penal.
O excesso de intervenção em afronta à autonomia privada nas hipóteses de contratos paritários, notadamente os de natureza empresarial, não se justifica em termos da lógica do princípio da função social. Aliás, a aplicação irrestrita do princípio entre iguais, na hipótese em que a proteção é desnecessária, reduz a força do próprio princípio e do Poder Judiciário que tem sua credibilidade colocada em xeque.
Se a grande valia do CDC foi dar mais justiça a uma relação notadamente injusta em desfavor do consumidor, não pode o Código Civil, que unificou as relações de direito provado, ser aplicado indistintamente às relações cíveis e às empresariais sem uma certa calibração. O Enunciado 356 tal como concebido pode representar bom exemplo da máxima de Cícero:
“Summum jus, summa injuria”