O título das presentes linhas pode induzir o leitor em erro, assim, começo por explicá-lo. O artigo em questão se dividirá em duas partes. Na primeira, algumas impressões de um curso que estou fazendo em Londres (dias 23 a 27 de abril) e na segunda uma provocação recebida do Prof. Cassettari e de um seguidor do twitter (@professorsimao)
a) Civil Law e common law
A Escola da Magistratura de Pernambuco (Esmape) organizou, para os magistrados daquele Estado, um curso em Londres no IALS (Institue of Advanced Law Studies) da Universidade de Londres. Concebido pelo magistrado Ailton Alfredo de Souza e com o apoio integral do empreendedor Diretor da Esmape, Desembargador Leopoldo Raposo, tive a oportunidade de participar em janeiro de sua organização e, agora, de sua concretização.
O curso de Direito Comparado tratou, nos três primeiros dias de aula, do sistema britânico fornecendo importantes noções da Common Law da Inglaterra e Gales. Hoje, falamos apenas de direito civil. Para um professor, poder estudar é algo sempre prazeroso. Ouvir e não falar, perguntar e não responder são experiências que os professores deveriam se propor a ter com mais frequência (falava disto em Brasília com o Prof. Pablo Malheiros).
Bem, a noção de Common Law (direito comum), surge na Idade Média com a Justiça itinerante do Reino. Como o Rei e Corte perambulavam por seus domínios “ditando” a Justiça, quando o Rei se deparava com um caso semelhante a outro anteriormente decidido, aplicava o direito comumente aplicado aos casos como aquele. Comum significa já aplicado e repetido para casos semelhantes. Nesta imagem encontra-se a origem dos precedentes.
De início, dizer que não há uma constituição na Inglaterra consiste grande equívoco. Realmente, não há uma constituição codificada, mas há uma constituição composta por diversas fontes, inclusive as escritas. Assim, as leis escritas como o Ato dos Direitos Humanos (Human Rights Act de 1999) fazem parte da Constituição inglesa, e o é porque tem status superior em razão de sua aplicação a todos os cidadãos. Os acordos internacionais (legislação escrita), os precedentes judiciais, as Convenções não escritas (como a Monarquia Unitária, a Supremacia do Parlamento, a impossibilidade de fato de veto pelo Monarca das leis aprovadas pelo Parlamento, apesar da possibilidade de direito existir) fazem da Inglaterra uma monarquia parlamentar e compõe a sua Constituição não codificada.
Interessante notar que se o Parlamento fez a lei (lei escrita, portanto), esta nasce a partir da vontade do povo (já que o Parlamento, pelo menos a Casa dos Comuns, é eleito) e o Monarca não pode, de fato, vetá-la, pois isto representaria a vontade de um (Rei ou Rainha) contra a vontade de todos (povo). Aliás, se a Monarquia Britânica vem dos anos 900 (com Alfred, o Grande) e dura até hoje, mesmo após a revolução que decapitou Charles I, é porque os reis foram sábios na condução dos assuntos de Estado e em sua respeitosa relação com o Parlamento (e com o povo, portanto).
Alguns fatos em termos de direito civil merecem nossa reflexão.
Em matéria contratual, o sistema inglês da Common Law (que é muito diferente do americano, conforme enfatizado por todos os docentes) gera questões que demonstra verdadeiro abismo que nos separa. O contrato não se forma com o acordo de vontades. A noção de contrato consensual, que se aperfeiçoa com o consenso, tão cara ao Direito Romano, que conseguiu superar a noção de contrato real, até então adotada como única, não ecoou em terras inglesas. Ainda que haja aceitação integral à proposta, para a formação do contrato é necessário um CONSIDERATION. Há necessidade algum ato de uma das partes (que para nós seria considerado ato de execução) para que contrato se forme. Se for a compra e venda, deve haver entrega de dinheiro (ainda que de pequena parte) ou da mercadoria (ou documento que a represente). Se for um contrato de empreitada, a compra do material serve para formar o contrato, ou mesmo o pagamento do sinal.
Senti uma dificuldade incrível em compreender como se faz prova desta “consideration” caso haja litígio.
Outra coisa interessante é que pelo instituto da PRIVITY OF CONTRACT, o contrato não pode conferir direitos ou obrigações para terceiros que dele não fizeram parte. É a máxima “res inter alios acta, tercio nec nocet, nece prodest”, ou seja, a coisa entre os outros, não prejudica nem beneficia terceiros. Neste ponto, o direito inglês e o da civil Law se aproximam. E o mais interessante é que por influência da civil Law, o direito inglês passou a admitir a figura do terceiro cúmplice, ou seja, o contrato passa a atingir terceiros que dele não fizeram parte. No direito brasileiro, o melhor exemplo está no artigo 608 do CC (Art. 608. Aquele que aliciar pessoas obrigadas em contrato escrito a prestar serviço a outrem pagará a este a importância que ao prestador de serviço, pelo ajuste desfeito, houvesse de caber durante dois anos.), que, conforme explica Flavio Tartuce, retrata o caso ocorrido entre Zeca Pagodinho e as empresa Brahma e Schincariol.
Tal efeito não atingiu o direito americano em que “privity of contract”continua a ser aplicada.
A proteção dos vulneráveis é comum ao sistema brasileiro e inglês. Também por aqui não há regra pela qual o fornecedor é obrigado a trocar produtos sem defeito, por mero capricho do consumidor. Mas também por aqui esta troca é pratica comercial corriqueira. Já em caso de defeito ou vício, a troca é garantida por lei e qualquer cláusula que afaste ou restrinja este direito é nula.
No sistema inglês o contrato tem forma livre e isto coincide com o Direito brasileiro (vide art. 107 do CC). Curiosamente, quando o contrato diz respeito a bem imóvel, a forma escrita é exigida. Contudo a a exigência não se dá apenas na constituição ou modificação de direito real sobre imóvel (nos moldes do art. 108 do CC), mas inclui contratos de simples transferência de posse (locação, comodato).
Em termos de responsabilidade civil (tort law), achei curioso que os casos de dano indenizável existem em numerus clausus, ou seja, o direito inglês não conhece uma cláusula geral de indenização (vide arts. 186 e 927, p. único do CC). A ideia romana de se afastar de um sistema fechado, que veio à lume com a Lex Aquilia de Damno, no Século III a. C., não atingiu a ilha. Os danos indenizáveis decorrem de precedentes ou de leis escritas. Saindo destas hipóteses, não se fala em indenização.
b) Condomínio e Locação de vaga de garagem: A Súmula 449 do STJ e sua permanência no sistema.
O Código civil foi novamente alterado no mês passado. A lei 12.607 de 4 abril de 2012, alterou o artigo 1331, parágrafo primeiro do CC, que passou a ter a seguinte redação:
“§ 1o As partes suscetíveis de utilização independente, tais como apartamentos, escritórios, salas, lojas e sobrelojas, com as respectivas frações ideais no solo e nas outras partes comuns, sujeitam-se a propriedade exclusiva, podendo ser alienadas e gravadas livremente por seus proprietários, exceto os abrigos para veículos, que não poderão ser alienados ou alugados a pessoas estranhas ao condomínio, salvo autorização expressa na convenção de condomínio”.
A parte destacada foi acrescida pela lei em questão que terá vacatio legis de 45 dias, pois o artigo que previa vigência imediata foi vetado pela Presidente da República.
A questão debatida no twitter foi a seguinte: com a mudança em questão,a Súmula 449 do STJ teria perdido sua aplicabilidade. A resposta do Prof. Cassettari foi positiva e a minha negativa.
Dispõe a Súmula que “A vaga de garagem que possui matrícula própria no registro de imóveis não constitui bem de família para efeito de penhora. (Súmula 449, CORTE ESPECIAL, julgado em 02/06/2010, DJe 21/06/2010)”
Não vejo qualquer relação entre a impossibilidade de se alienar ou alugar para terceiros vagas de garagem e sua impossibilidade de penhora pelo credor. Algumas considerações são importantes. A primeira é que a penhora não significa ato de alienação, porque não há vontade de transferir a propriedade pelo devedor. É ato de expropriação pelo Estado de bem de quem deve. Alienação pressupõe negócio jurídico que, a seu turno, pressupõe vontade.
A segunda consideração é que ainda que a ratio legis da proibição de venda ou locação é a segurança dos condôminos. Se um terceiro frequentar as dependências do Condomínio, os condôminos veriam um aumento de riscos. Desta consideração duas outras surgem.
A primeira é que se pode imaginar, então, que o credor adjudicante ou o terceiro arrematante poderiam ter a propriedade da vaga com limitações (sobre as limitações ao Direito de Propriedade recomendamos a obra de Carlos Alberto Dabus Maluf, editora RT). O proprietário teria a propriedade, mas não a posse direta, ou seja, poderia locar ou ceder em comodato a vaga para os demais condôminos, ou, ainda, ter a propriedade desta para, em momento que entender oportuno, vendê-la a um dos condôminos. Essa limitação não gera qualquer espanto para o direito civil. No usufruto, na locação no comodato ou arrendamento rural, temos proprietários privados de posse direta por força de contrato.
Para aqueles que admitem a exclusão do condômino nocivo (com base no art. 117, par. único do CC), temos clara situação em que o condômino é privado da posse direta sem perder a propriedade. Aliás, quando um dos cônjuges é afastado do lar por medida cautelar, e por força do regime de bens é comunheiro do imóvel, temos clara situação de propriedade limitada.
Assim, sinceramente, não vejo como confundir posse com propriedade, razão pela qual a Súmula 449 do STJ não se revela incompatível com a nova redação do CC. Agora, se me perguntarem se entendo que a Súmula, em seu mérito, é adequada, a resposta passaria por outro debate com outras premissas e necessitaria de uma coluna nova da Carta Forense.