Decidi escrever esta coluna, apesar de cuidar de dois temas realmente díspares, pois ela retrata eventos ocorridos em uma única semana (segunda semana de abril de 2013) e como o Direito de Família permeia minha existência pessoal.
I – Catarina, a Grande e a obra de Robert Massie (editora Rocco).
Há algum tempo tenho descoberto nas biografias o prazer da leitura de obras não jurídicas. Confesso que desde a leitura da obra Chatô – Rei do Brasil, do jornalista Fernando Moraes, uma das mais bem escritas biografias, as boas surpresas tem se repetido.
Ganhei de minha amiga Cecília a biografia da Catarina, a Grande, que já havia sido lida por meu tio Newton, ávido leitor e pessoa de cultura extraordinária. A obra cuida com cuidado histórico, de retratar a monarca russa em sua vida pessoal e como chefe de Estado.
Esta fantástica mulher que nasceu no Século XVIII, com pensamento iluminista, que se correspondeu com Voltaire e era conhecida de Diderot, foi a última mulher a ocupar o trono russo.
Nascida em um principado alemão (Zerbst) que posteriormente seria anexado pela Prússia e comporia a Alemanha, batizada de Sofia Augusta Frederica, é enviada à Rússia com 14 anos, para se casar com aquele que seria o futuro Czar Pedro III (apenas um ano mais velho que ela).
Ao abraçar a fé ortodoxa, já na Rússia, Sofia adota o nome de Catarina (Ekatarina) e renuncia a fé protestante de seus pais. Pedro e Catarina se casam em 1745: ela com 16 e ele com 17 anos.
Lendo a obra, notei um fato curioso e de interesse jurídico.
Ao contrário de diversos monarcas e herdeiros do trono que tinham verdadeira obsessão por gerar um filho que, um dia os sucederia no trono, Pedro, em razão de graves problemas ocorridos em sua infância e, eventualmente algum problema físico, após 9 anos de casado, não havia mantido relações sexuais com sua esposa.
O curioso é que a necessidade de produzir um herdeiro ao trono russo fez com que essa extraordinária mulher tivesse três filhos com três diferentes homens: Sergei Saltykov, Stanislaus Poniatowski e Gregório Orlov. O filho biológico de Sergei Saltykov, um menino, filho primogênito de Catarina, foi batizado de Paulo e reconhecido pelo marido de Catarina, como se seu filho biológico fosse.
A solução abraçada pela família real foi a parentalidade socioafetiva (nunca houve adoção de Paulo por Pedro) por meio de um instituto que, séculos depois, convencionou-se chamar “adoção à brasileira”. Uma adoção à brasileira em plena Rússia do Século XVIII!
Pedro sabia que o filho não era biologicamente seu, pois não havia consumado o casamento, mas optou por ser pai para resolver um problema dinástico. O biógrafo Robert Massie conclui que, na realidade, o casal real, apesar dos 18 anos que durou seu casamento, nunca manteve relação sexual segundo as Memórias redigidas pela própria Catarina.
II – As inquietações de Zeno Veloso.
Naquela semana recebi, ainda dois telefonemas de Zeno Veloso (sempre nas primeiras horas da manhã), com duas questões referentes ao Direito das Sucessões que merecem uma reflexão.
A primeira inquietação diz respeito ao instituto da renúncia da herança. Determinada pessoa, em união estável, falece e deixa um filho exclusivo (apenas do falecido, que não era filho da companheira sobrevivente) e a companheira sobreviva.
Este filho do falecido, que muito apreço tem pela companheira de seu pai, resolve renunciar (renúncia abdicativa ou pura e simples) à herança para beneficiar a companheira. Contudo, o único descendente do falecido esqueceu-se de um detalhe: por força do art. 1.810 do Código Civil. “na sucessão legítima, a parte do renunciante acresce à dos outros herdeiros da mesma classe e, sendo ele o único desta, devolve-se aos da subsequente”.
E na classe subsequente, o falecido não tinha ascendentes, mas tinha parentes colaterais (irmãos do falecido). Conclusão a renúncia do descendente gerará a concorrência entre a companheira do falecido e os colaterais do morto, nos termos do art. 1790, III do Código Civil.
Curiosamente, se a mesma situação tivesse ocorrido, na hipótese de o falecido ser casado, a solução seria diametralmente oposta: o cônjuge herdaria a totalidade dos bens, excluindo os colaterais (arts. 1829, III e 1838 do CC).
A segunda inquietação é também interessante. Pelo texto do art. 1790, caput, o companheiro só participa da sucessão do companheiro falecido quanto aos bens onerosamente adquiridos na constância da união estável. Assim, formam-se duas massas patrimoniais distintas.
A primeira, composta pelos bens onerosamente adquiridos na constância da união estável, será herdada pelo companheiro em concorrência com os parentes do falecido, seguindo a ordem de vocação hereditária. Primeiro concorrerá com descendentes, ou, na sua falta, com os ascendentes, ou ainda, na falta de descendentes ou ascendentes em concorrência com os colaterais (incisos I a III do art. 1790).
A segunda, composta por todos os demais bens, sejam eles anteriores à união estável, ou posteriores mas gratuitamente adquiridos (por doação ou herança) pertencerão exclusivamente aos descendentes, ou, na sua falta, com os ascendentes, ou ainda, na falta de descendentes ou ascendentes aos colaterais. O companheiro não participa, segundo a lei, da sucessão quanto a tais bens.
Perguntou-me Zeno Veloso: imaginemos que certa pessoa tem um bem anterior à união estável (bem particular, portanto) e, durante a união estável, vende este bem e adquire com o produto da venda outro, pelo mesmo valor da venda. Este bem foi adquirido na constância da união estável, a título oneroso, mas com produto de venda de bem anterior à união estável. É o chamado bem sub-rogado.
Este bem sub-rogado comporia o acervo patrimonial sobre o qual o companheiro concorre? A resposta é negativa. Em razão da sub-rogação este bem guarda a caraterística de bem particular, não compõe o acervo sobre o qual o companheiro herda. O objetivo do Código Civil é permitir a sucessão quanto aos bens adquiridos de maneira onerosa na constância da união estável, pois estes foram adquiridos com a presunção absoluta de contribuição de ambos os companheiros, seja ela financeira ou imaterial (apoio, dedicação, cuidados com o outro). É a interpretação teleológica e não literal que se faz do dispositivo.