Alexandre, menino das Minas Gerais, fruto do casamento de seus pais, criado no amor e afeto até seus sete anos. Luciane, nascida fora do casamento em terras paulistanas, com o estigma da bastardia que ainda paira na sociedade brasileira, apesar de afrontar claramente os preceitos constitucionais. Alexandre foi vítima de um fenômeno comum. Seus pais se divorciaram, e com o fim da conjugalidade e constituição de nova família, seu pai entendeu que havia se encerrado a parentalidade, negando-se a conviver com o menor, a ter com ele qualquer relação que não a jurídica. Luciane, por sua vez, nunca teve um pai em sentido fático ou jurídico. Só conseguiu ser reconhecida como filha após um longo procedimento judicial, e, mesmo assim, após o reconhecimento, só recebeu de seu pai hostilidades. Alexandre recebia a pensão religiosamente, e materialmente estava provido. Seu pai entendia que seus deveres aí se encerravam, já que o convívio com o filho era um direito seu e, como qualquer direito, poderia não ser exercido. Luciane não recebeu o apoio material que decorre da paternidade, tendo sofrido privações desde sua infância. Após o reconhecimento da paternidade por meio de decisão judicial, Luciane precisou ainda exigir judicialmente os alimentos, porque continuava a ser ignorada por seu pai. As diferenças entre Alexandre e Luciane são diversas, mas algo os une: foram vítimas de uma das mais perversas condutas por parte de seus pais: o ABANDONO FILIAL. O pai de Alexandre teve novos filhos em seu segundo casamento. O pai de Luciane teve filhos em seu casamento. Quanto a estes, os filhos da nova união (pai de Alexandre) ou da união desejada e socialmente aceita (pai de Luciane) o tratamento se revelava impecável. Carinho, presença, preocupação, um bom dia ao acordarem, um feliz Natal no dia 25 de dezembro, as férias na praia e muito carinho, até nos pequenos gestos, como um sorvete oferecido, uma brincadeira na piscina, um bilhete de feliz aniversário. Já com relação a Alexandre e Luciane, havia apenas uma conduta: a absoluta indiferença. Seus pais nunca se preocuparam se os filhos estavam bem, se sentiam dores ou frio, se comida havia na sua mesa, se teriam férias, se tinham bom desempenho escolar, se aquela febre advinha de uma gripe ou de doença mais séria. Não passaram juntos sequer um dia dos pais, um Natal em família, uma viagem de férias, um aniversário dos menores. Não receberam presentes, nem carinho, nem bilhetes, nem um bom dia, nem uma pergunta sobre sua saúde, se estavam felizes ou não. Além destas semelhanças e das diferenças apontadas, Alexandre e Luciane se distinguem pela forma de tratamento que receberam do Poder Judiciário: no caso do Alexandre houve por parte do Judiciário uma cumplicidade, o abandono contou com as bênçãos do STJ. Já no caso de Luciane, o STJ fez Justiça com J maiúsculo. Em 29 de novembro de 2005, disse o STJ o seguinte: “RESPONSABILIDADE CIVIL. ABANDONO MORAL. REPARAÇÃO. DANOS MORAIS. IMPOSSIBILIDADE. 1. A indenização por dano moral pressupõe a prática de ato ilícito, não rendendo ensejo à aplicabilidade da norma do art. 159 do Código Civil de 1916 o abandono afetivo, incapaz de reparação pecuniária.” (REsp 757.411/MG, Rel. Ministro FERNANDO GONÇALVES). As razões invocadas pelo Ministro Relator para ser cúmplice do abandono e chancelar o desamparo, dando a benção estatal é de causar estranheza: “O pai, após condenado a indenizar o filho por não lhe ter atendido às necessidades de afeto, encontrará ambiente para reconstruir o relacionamento ou, ao contrário, se verá definitivamente afastado daquele pela barreira erguida durante o processo litigioso? Quem sabe admitindo a indenização por abandono moral não estaremos enterrando em definitivo a possibilidade de um pai, seja no presente, seja perto da velhice, buscar o amparo do amor dos filhos“. A razão do decisum é curiosa e pode ser traduzida pela seguinte ideia: se o pai se negou a ser pai durante o período em que Alexandre mais precisava, quem sabe Alexandre será um bom filho quando seu pai, na velhice, dele precisar? Afirmou o Ministro Fernando Gonçalves: “por certo um litígio entre as partes reduziria drasticamente a esperança do filho de se ver acolhido, ainda que tardiamente, pelo amor paterno. O deferimento do pedido, não atenderia, ainda, o objetivo de reparação financeira, porquanto o amparo nesse sentido já é providenciado com a pensão alimentícia, nem mesmo alcançaria efeito punitivo e dissuasório, porquanto já obtidos com outros meios previstos na legislação civil, conforme acima esclarecido.” E quais seriam as sanções possíveis, segundo o Ministro? A perda do poder familiar. O argumento beira o ridículo. Se o pai fosse destituído do poder familiar seria premiado, porque se veria totalmente livre de seus deveres. A destituição do poder familiar ocorreria no interesse do pai e não do menor! A conclusão do julgado que puniu Alexandre foi a seguinte: “Como escapa ao arbítrio do Judiciário obrigar alguém a amar, ou a manter um relacionamento afetivo, nenhuma finalidade positiva seria alcançada com a indenização pleiteada.” Esta frase demonstra um velho ranço de alguns juristas, minoritários é verdade. Falar de conceitos sem os conhecê-los o que acaba por gerar absurdos jurídicos. O direito não define afeto. A disciplina que o faz é a psicanálise. Em momento nenhum Alexandre pretendia receber indenização por falta de amor. Seria uma tese pueril a ser defendida por alguém de bom senso. Amor é algo camoniano, fogo que arde sem se ver, ferida que dói e não se sente. Amor e afeto não se confundem conforme veremos. Em 02 de maio de 2012, o mesmo STJ, com nova composição, atento a um direito de família mais humano e solidário, julgou o caso da Luciane. A Ministra Nancy Andrighi deixou claro que “na hipótese, não se discute o amar – que é uma faculdade – mas sim a imposição biológica e constitucional de cuidar, que é dever jurídico, corolário da liberdade das pessoas de gerar ou adotar filhos” (Informativo STJ 496, REsp 1.1.59.242/SP) [1]. Confundir cuidado com amor foi erro lamentável que abonou o abandono e serviu de estímulos aos péssimos genitores. Esclarecer que amor e afeto não se confundem revelou, de maneira pedagógica, a sensibilidade da Ministra Nancy Andrighi. Afeto, segundo definição da psicanálise, nas palavras Giselle Câmara Groeninga, é, “no direito, em ramos da filosofia e no senso comum, identificado com o amor. Em nossa visão positivista era inclusive visto como dissociado do pensamento. Mas, ele é muito mais do que isto. Sem dúvida, uma qualidade que nos caracteriza é a ampla gama de sentimentos com que somos dotados e que nos vinculam – uns aos outros, de forma original face a outras espécies. Com base nos afetos, que se transformam em sentimentos, é que criamos as relações intersubjetivas – compostas de razão e emoção – do que nos move. À diferença dos outros animais, somos constituídos, além dos instintos, de sua tradução mental em impulsos de vida e de morte. Estes ganham a qualidade mental de afetos – energia mental com a qualidade de ligação, de vincula ção = libido, Eros, ou de desligamento, de não existência = morte, Thanatos. São estes impulsos que nos afetam, desde dentro, e que se transformam em sentimentos – que ganham um sentido, uma direção na relação com as outras pessoas, com nuances que variam do amor ao ódio, em combinações variadas. É por meio dos afetos que valorizamos e julgamos a experiência em prazerosa, desprazerosa, boa, má. Mas vamos além disto, e valoramos nossas experiências também de acordo com o pensamento, com a experiência e com valores construídos nas relações e apreendidos do meio social. São os afetos que nos vinculam das mais diversas formas às pessoas. E é certo que também somos afetados pelos estímulos externos que são traduzidos, interpretados mentalmente segundo as experiências passadas e a valoração que lhes foram atribuídas. Somos seres axiológicos por excelência, e parte desta qualidade que nos é inerente vem justamente dos afetos” (Descumprimento do de ver de convivência: danos morais por abandono afetivo. A interdisciplina sintoniza o direito de família com o direito à família. In A outra face do Poder Judiciário – Decisões inovadoras e mudanças de paradigmas. Coord. Giselda Maria Fernandes Novaes Hironaka. Belo Horizonte: Del Rey/São Paulo: Escola Paulista de Direito – EPD. 2005). A valorização do afeto remonta ao brilhante trabalho de João Baptista Vilella, jurista de primeira grandeza, escrito no início da década de 80, tratando da desbiologização da paternidade. Na essência, o trabalho procura dizer que o vínculo familiar seria mais um vínculo de afeto do que um vínculo biológico. Assim surgiria uma nova forma de parentesco civil, a parentalidade socioafetiva, baseada na posse de estado de filho. O julgado em que o STJ pune o abandono e põe fim à irresponsabilidade parental ressalta que “os sentimentos de mágoa e tristeza causados pela negligência paterna e o tratamento como filha de segunda classe, que a recorrida levará ad perpetuam, é perfeitamente apreensível e exsurgem das omissões do pai (recorrente) no exercício de seu dever de cuidado em relação à filha e também de suas ações que privilegiaram parte de sua prole em detrimento dela, caracterizando o dano in re ipsa e traduzindo-se, assim, em causa eficiente à compensação”. Frisou o Ministro Sidnei Beneti, que “os atos pelos quais se exteriorizou o abandono, que devem ser considerados neste processo, não são genéricos, mas, sim, concretos, apontados na petição inicial como fatos integrantes da causa de pedir, ou seja: 1º) Aquisição de propriedades, por simulação, em nome dos outros filhos; 2º)Desatendimento a reclamações da autora quanto a essa forma de aquisição disfarçada; 3º) Falta de carinho, afeto, amor e atenção, apoio moral, nunca havendo sentado no colo do pai, nunca recebendo conselhos, experiência e ajuda na escola, cultural e financeira; 4º) Falta de auxílio em despesas médicas, escolares, abrigo, vestuário e outras; 5º) Pagamento de pensão somente por via judicial; 6º) Somente haver sido reconhecida judicialmente como filha”. A clareza da argumentação do Ministro Beneti fala por si. Nada mais a acrescentar. O Poder Judiciário se revelou coerente com a função que dele se esperar: atribuiu responsabilidade a quem tem e dela se furta. Fala-ser em “monetarização do afeto”, como pensam alguns, é algo pueril que significa ausência completa de conhecimento jurídico. É lição basilar que a indenização tem por escopo retornar a vítima ao estado anterior ao dano ( statu quo ante). Contudo, há casos em que este retorno, esta volta se revelam impossíveis. Há mais de dois séculos o Direito já decidiu que, sendo o retorno impossível, a vítima recebe um valor pecuniário, não para reparar o que não pode reparar, mas para compensar aquilo que se perdeu. Nesse sentido, toda a indenização por dano moral (exemplo clássico é a morte de um parente querid o) significaria “monetarização do afeto”? Quem defende esta tese pueril, poderia responder qual seria a forma adequada de se punir o causador de dano moral. A indenização muito representa para Luciane e para muitas outras pessoas abandonadas afetivamente. Para Luciane, compensa-se um vazio, já que os danos que sofreu são irreparáveis. O dinheiro não preenche o vazio, mas dá uma sensação de que a conduta lesiva não ficou impune. Para outros filhos abandonados, nasce a esperança de que poderão receber do Poder Judiciário uma decisão que puna os maus pais, já que o afeto não receberam e nunca receberão. Para os pais, que se comportam como doadores de esperma, ou como provedores materiais descompromissados, fica o aviso: a irresponsabilidade será punida! A conduta lesiva não será tolerada pelo Poder Judiciário. E, para o Ministro Fernando Gonçalves fica uma lição. A Justiça tarda mas não falha. Fonte: Jornal Carta Forense.[1]. O TJ/SP já havia admitido esta reparação no ano de 2008. “Responsabilidade civil. Dano moral. Autor abandonado pelo pai desde a gravidez da sua genitora e reconhecido como filho somente após propositura de ação judicial. Discriminação em face dos irmãos. Abandono moral e material caracterizados. Abalo psíquico. Indenização devida. Sentenà §a reformada. Recurso provido para este fim. Apelação com revisão 5119034700”, TJSP, Rel. Des. CAETANO LAGRASTA, j. 12.8.2008).
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