Há muito tempo, quase 10 anos, escrevi nessa Carta Forense uma coluna denominada “Novamente o Afeto”[1] cujo tema que narrava era um jantar familiar de comemoração de aniversário de minha tia socioafetiva. Transcrevo um pequeno trecho da coluna para os leitores:
“Durante o jantar meu tio me pergunta: ‘Zé Fernando, você quer ver uma foto de minha neta?’ Estranhei a pergunta e meu tio, sacou o celular e, todo orgulhoso, mostrou a foto da linda criança de 3 anos de idade, toda sorridente. Ele me dizia que a menina o chama de avô e ele a chama de neta (tractatus) e que todos sabem, na cidade o carinho especial que se criou entre os dois (fama). “Ela me cativou!”, dizia meu tio todo feliz. Meus tios têm planos para o futuro da neta: abrir uma poupança para custear seus estudos! Hoje, dão presentes, ajudaram a mãe da criança a construir uma casa e assim por diante. Um de seus filhos me perguntou assustado se a menina teria, juridicamente, algum direito”.
Dessa conversa vieram algumas perguntas. Curiosamente, hoje[2], em sala de aula da Faculdade de Direito da USP, uma aluna me fez essa pergunta: é possível uma relação socioafetiva de 2º grau na linha reta, ou seja, entre avós e netos?
É verdade que nesses 10 anos que separam minhas duas reflexões sobre o AFETO como valor jurídico, muita coisa mudou. Em 2016, com a decisão da Repercussão Geral 622 o STF reconheceu ser possível a cumulação da paternidade biológica e a afetiva: “a paternidade socioafetiva, declarada ou não em registro, não impede o reconhecimento do vínculo de filiação concomitante, baseada na origem biológica, com os efeitos jurídicos próprios”
Assim cabe, agora, responder àquela pergunta não respondida em agosto de 2007: a neta socioafetiva tem direitos patrimoniais com relação aos avós? Contudo, antes dessa resposta temos uma outra pergunta que se faz necessária: Como pode haver uma relação avoenga se não uma relação paterno-filial?
No caso narrado, João e Maria tratavam a pequena Antonia como neta e essa assim se sentia. Contudo, entre os filhos de João e Maria não havia para com a pequena Antonia o menor sinal de afeto ou carinho. Simplesmente os filhos do casal ignoravam a menina e não tinham com ela qualquer relação afetiva. A pequena Antonia seria neta de João e de Maria mesmo sem que fosse filha de um de seus filhos?
A pergunta é difícil e incômoda, mas a resposta tem amparo no sistema jurídico: entre os avós e o neto haveria apenas parentesco parcial ou limitado, já que o vínculo não expandiu aos filhos do casal.
A noção de parentesco limitado sempre existiu no modelo de adoção simples que vigia no Código Civil de 1916 até a entrada em vigor do ECA. Dispunha o art. 376 que:
“Art. 376. O parentesco resultante da adoção (art. 336) limita-se ao adotante e ao adotado, salvo quanto aos impedimentos matrimoniais, á cujo respeito se observará o disposto no art. 183, ns. III e V”
Assim, o adotado não era irmão dos filhos do adotante, nem neto dos pais do adotante. Havia parentesco parcial e limitado.
Entre o cônjuge do adotado e o adotante não havia parentesco por afinidade. Não havia a relação de sogro-sogra e genro e nora. Daí porque dispunha o Código Civil de 1916 que não poderiam se casar o adotado com quem foi cônjuge do adotante e o adotante com quem o foi do adotado. Curiosamente essa regra foi repetida no atual CC (art. 1521, III) apesar de atualmente, nas adoções ocorridas sob o sistema do ECA, o parentesco ser ilimitado.
Com as relações avoengas, o mesmo ocorrerá. João e Maria serão avós de Antonia e o parentesco não vai além da linha reta em segundo grau. Assim, Antonia não será irmã dos filhos de João e Maria e com eles não terá qualquer relação jurídica.
Desse parentesco parcial temos o seguinte:
a) estabelecido o vínculo limitado aplicam-se as regras alimentares entre avós e netos que passam a ser reciprocamente credores e devedores de acordo com o binômio possibilidade-necessidade, lembrando-se sempre que na classe dos ascendentes há uma ordem para se cobrar alimentos. Primeiro são chamados os de grau mais próximo e depois os de grau mais remoto.
b) Os avós socioafetivos não poderão adotar a neta, por expressa proibição do Eca (art. 42, par. 1º), mas estão habilitados a exercer sua tutela (art. 1731, I do CC) caso os pais percam o poder familiar ou venham a falecer.
c) Os avós socioafetivos podem ter a guarda da menor observado seu melhor interesse.
d) Surgem entre eles impedimentos matrimoniais para casamento (art. 1521, I do CC).
e) Há direitos sucessórios por sucessão legítima. A única questão é que como descendentes de grau mais próximo excluem os de grau mais remoto, restaria saber se a neta socioafetiva herdaria por representação (como se por ficção seu pai fosse pré-morto) ou apenas herdaria por direito próprio em concorrendo com os demais netos apenas. A resposta mais adequada é que herdaria por representação, pois o espírito da lei é garantir a vontade presumida do morto. Nessa hipótese, por presunção de afeto, poder-se-ia concluir que os avós gostariam que a neta herdasse parte de seus bens.
E com relação aos filhos do casal com quem a neta sociafetiva não tem qualquer parentesco, os efeitos jurídicos são inexistentes. Não há parentesco algum, quer seja para fins de guarda ou tutela, quer seja para fins de sucessão legítima, quer seja para fins de impedimentos matrimoniais. São estranhos que tem parentes em comum.
Assim, 10 anos depois respondo aos leitores: há efeitos patrimoniais evidentes decorrentes do parentesco limitado que surge em uma relação avoenga socioafetiva.