Afeto: de valor jurídico à perversão. Eu errei. E muito. Parte I

Há muitos anos se tem debatido o afeto como valor jurídico. Há muitos anos a doutrina se vale das lições de João Baptista Vilella, em seu emblemático texto de 1979, para dar contorno jurídico ao afeto que, até então, tinha apenas um viés psicanalítico. “Desbiologização da paternidade” está publicada na revista nº 21 da Faculdade de Direito da Universidade Federal de Minas Gerais [1].

Villela escrevia poeticamente. É por isso que afirma o seguinte: “A composição se processa em dois níveis: no da matéria, como quando, por exemplo, o homem, ao invés de se abrigar da chuva ou do sol, utiliza-os para fazer crescer as suas sementes, e no nível do espírito, como quando se estabelecem regras sociais e valores sobre fenômenos da causalidade física”[2]

A base do raciocínio do autor é: “Note-se, entretanto, que a paternidade, em si mesma, não é um fato da natureza, mas um fato cultural”[3]

Para Villela, a ideia do afeto formador de vínculos jurídicos é bíblica: “Que fez o sábio magistrado para dirimir o conflito das duas mulheres, que se dizendo, cada uma, ser a mãe, pretendiam a guarda da criança? Não recorreu a qualquer critério de natureza biológica. Nada que, sequer de longe, recordasse os sofisticados exames serológicos ou as complexas perícias antropogenéticas, que um juiz tem hoje à disposição. Simplesmente pôs à prova o amor à criança por parte das querelantes. Sua capacidade de renúncia em favor do filho. O dom de si mesmas. Não buscou o lúcido filho de DAVI assentar a verdade biológica, senão, antes, surpreender a capacidade afetiva. Ou seja: fundou-se em nada menos do que naquilo que, em linguagem de hoje, se identifica na Alemanha por Kindeswohl e na América do Norte por the best interest of the child”[4]

E ainda, temos o amor e o cuidado na base da teoria. “Irrespondível é a lição de HEGNAUER, quando ensina que não é ‘a voz mítica do sangue’ que indica à criança quem são seus pais, ‘senão o amor e o cuidado, que a conduzem do desvalimento para a autonomia’”[5]

Sobre a valorização desse vínculo afetivo como fundamento do parentesco civil, escreve muito bem Paulo Luiz Netto Lôbo que: “O modelo tradicional e o modelo científico partem de um equívoco de base: a família atual não é mais, exclusivamente, a biológica. A origem biológica era indispensável à família patriarcal, para cumprir suas funções tradicionais. Contudo, o modelo patriarcal desapareceu nas relações sociais brasileiras, após a urbanização crescente e a emancipação feminina, na segunda metade deste século. No âmbito jurídico, encerrou definitivamente seu ciclo após o advento da Constituição de 1988. O modelo científico é inadequado, pois a certeza absoluta da origem genética não é suficiente para fundamentar a filiação, uma vez que outros são os valores que passaram a dominar esse campo das relações humanas. (…) Em suma, a identidade genética não se confunde com a identidade da filiação, tecida na complexidade das relações afetivas, que o ser humano constrói entre a liberdade e o desejo”[6]

Em razão da premissa pela qual pai é quem cria e não quem participa com material genético, o instituto da parentalidade socioafetiva tomou forma no Direito brasileiro e as decisões dos tribunais sobre o tema se multiplicaram.

Nesse sentido, o TJ-SP já decidiu que o filho tem direito de produzir prova do vínculo socioafetivo, em que pese o exame de DNA ter excluído a paternidade biológica, cassando a sentença de primeira instância que havia julgado a ação negatória de paternidade cumulada com exoneração de pensão procedente (Ap. 464.936-4/0-00).

Nesse sentido já decidiu também o TJ-RS:

“AÇÃO DECLARATÓRIA. ADOÇÃO INFORMAL. PRETENSÃO AO RECONHECIMENTO. PATERNIDADE AFETIVA. POSSE DO ESTADO DE FILHO AFETIVO. INVESTIGAÇÃO DE PATERNIDADE SOCIOAFETIVA. PRINCÍPIOS DA SOLIDARIEDADE HUMANA E DA DIGNIDADE DA PESSOA HUMANA. ATIVISMO JUDICIAL. JUIZ DE FAMÍLIA. DECLARAÇÃO DA PATERNIDADE REGISTRO. A paternidade sociológica é um ato de opção, fundando-se na liberdade de escolha de quem ama e tem afeto, o que não acontece, às vezes, com quem apenas é a fonte geratriz. Embora o ideal seja apenas a concentração entre as paternidades jurídicas, biológica e socioafetiva, o reconhecimento da última não significa o desapreço à biologização, mas atenção aos novos paradigmas oriundos da instituição das entidades familiares. Uma de suas formas é a ‘posse de estado de filho’, que é a exteriorização da condição filia, seja por levar o nome, seja por ser aceito como tal pela sociedade, com visibilidade notória e pública. Liga-se ao princípio da aparência, que corresponde a uma situação que se associa a um direito ou estado, e que dá segurança jurídica, imprimindo um caráter de seriedade à relação aparente. Isso ainda ocorre com o ‘estado de filho afetivo’, que além do nome, que não é decisivo, ressalta o tratamento e a reputação, eis que a pessoa é amparada, cuidada e atendida pelo indigitado pai, como se filho fosse. O ativismo judicial e a peculiar atuação do juiz de família impõe, em afago à solidariedade humana e veneração respeitosa ao princípio da dignidade da pessoa, que se supere a formalidade processual, determinando o registro da filiação do autor, com veredicto declaratório nesta investigação de paternidade socioafetiva e todos os seus consectários”[7].

Bem, o Superior Tribunal de Justiça não se manteve alheio ao debate. Já em 2007 havia decidido: “‘O estado de filiação não está necessariamente ligado à origem biológica e pode, portanto, assumir feições originadas de qualquer outra relação que não exclusivamente genética. Em outras palavras, o estado de filiação é gênero do qual são espécies a filiação biológica e a não biológica (…). Na realidade da vida, o estado de filiação de cada pessoa é único e de natureza socioafetiva, desenvolvido na convivência familiar, ainda que derive biologicamente dos pais, na maioria dos casos’ (Mauro Nicolau Júnior in ‘Paternidade e Coisa Julgada. Limites e Possibilidade à Luz dos Direitos Fundamentais e dos Princípios Constitucionais’. Curitiba: Juruá Editora, 2006)”[8] .

O Superior Tribunal de Justiça, ainda no início dos anos 2000, repetiu tal entendimento ao julgar o REsp 1.003.628/DF.

Em seu voto, a ministra Nancy Andrighi observa, abstraindo-se de qualquer juízo de valor a respeito do processo julgado, que o considerável aumento dos pedidos formulados pelos “pais” perante o Judiciário, no sentido de não mais quererem exercer essa outrora eterna função, tem acarretado diretamente nas crianças envolvidas um inquietante estado de insegurança e abandono. Segundo a ministra, não há como desfazer um ato realizado com perfeita demonstração de vontade, como ocorreu no caso dos autos, em que o próprio recorrido [o pai não-biológico] manifestou que sabia não haver vínculo biológico com a criança, e, mesmo assim, reconheceu-a como sua filha. Se o fez com o intuito de agradar sua então mulher, tal motivação não caracteriza coação, como alegou de início. A ministra ressalta, ainda, que o recorrido jamais poderia valer-se de uma falsidade por ele mesmo perpetrada, o que, a seu ver, corresponderia a utilizar-se de sua própria torpeza para benefício próprio, o que realmente seria muito conveniente, em prejuízo direto à criança envolvida. A relatora afirma que é preciso ter em mente a salvaguarda dos interesses dos pequenos e que a ambivalência nas recusas de paternidade são particularmente mutilantes para a identidade das crianças. Isso impõe ao julgador desvelo no exame das peculiaridades de cada processo, no sentido de tornar, o quanto possível, perenes os vínculos e alicerces na vida em desenvolvimento[9].

Prevaleceu a ideia de que a parentalidade voluntariamente reconhecida não permite seu posterior desfazimento. O AFETO prevaleceu sobre o DNA.

Essa mesma solução se impõe quando os herdeiros do falecido pretendem ver a parentalidade socioafetiva desconstituída para fins de exclusão de certa pessoa da vocação hereditária. Não são poucos os casos em que os filhos biológicos ou os demais parentes do falecido propõem demanda visando exclusivamente a desconstituição da parentalidade socioafetiva o que lhes traz benefício sucessório.

Em outubro de 2001, O. de S.B., irmã de M.S.B., ajuizou ação declaratória de inexistência de parentesco alegando que A.C.M.B. não era sua sobrinha biológica e que o reconhecimento feito antes do falecimento do irmão teria sido simulado, caracterizando falsidade ideológica. Acompanhando o voto da relatora, ministra Nancy Andrighi, a Turma, por unanimidade, entendeu que a ausência de vínculo biológico é fato que, por si só, não revela a falsidade da declaração de vontade consubstanciada no ato do reconhecimento, já que a relação sócio-afetiva não pode ser desconhecida pelo Direito.  Em seu voto, a relatora detalhou a evolução legislativa e jurídica do conceito de filiação e citou jurisprudência e precedentes que permitiram o amplo reconhecimento dos filhos ilegítimos. Nancy Andrighi reconheceu que o STJ vem dando prioridade ao critério biológico para o reconhecimento da filiação nas circunstâncias em que há dissenso familiar, em que a relação sócio-afetiva desapareceu ou nunca existiu [10].

A partir dessa premissa, a doutrina (e aqui eu me incluo) festejou as primeiras decisões a respeito do tema. Finalmente o dado biológico não era a única forma de criação de vínculo de filiação ao lado da adoção e das técnicas heterólogas de reprodução humana assistida.

Era a concretização do texto de Villela. A vida real reconhecia o valor das lições do mestre.

Contudo, a doutrina (e aqui eu não me incluo) resolveu ampliar ao gosto do freguês o conceito de afeto como valor jurídico a ponto de chancelar situações práticas que sempre foram rechaçadas pelo sistema jurídico.

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[1] VILELLA, João Baptista. Desbiologização da paternidade. Revista da Faculdade de Direito da Universidade Federal de Minas Gerais, n. 21, p. 400-418, 1979. Disponível em: https://www.direito.ufmg.br/revista/index.php/revista/article/view/1156. Acesso em: 8 nov. 2023.

[2] Ibidem, p. 401.

[3] Ibidem.

[4] Ibidem, p. 408.

[5] Ibidem, p. 414.

[6] LÔBO, Paulo Luiz Netto. Princípio Jurídico da Afetividade na Filiação. In: LÔBO, Paulo Luiz Netto. Princípio Jurídico da Afetividade na Filiação. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/527/principio-juridico-da-afetividade-na-filiacao. Acesso em: 08 nov. 2023.

[7] TJ-RS, Apelação provida por maioria. Apelação cível n. 70008795775, 7ª Câmara de Direito Privado, Relator José Carlos Teixeira Giorgis, 23 de junho de 2004.

[8] REsp 234.833/MG, rel. ministro HÉLIO QUAGLIA BARBOSA, 4ª TURMA, julgado em 25/09/2007, DJ 22/10/2007 p. 276.

[9] A informação foi veiculada no site do STJ em 2008. Hoje não mais se consegue acessar a publicação no site do STJ, mas é possível encontrá-la no site do MP-DFT. Disponível em: https://www.mpdft.mp.br/portal/index.php/conhecampdft-menu/promotorias-justica-menu/pjij-menu/948-reconhecimento-espontaneo-da-paternidade-so-pode-ser-desfeito-diante-de-vicio-de-consentimento. Acesso em: 08 nov. 2023.

[10] A informação foi veiculada no site do STJ em setembro de 2007. Hoje não mais se consegue acessar a publicação no site do STJ, mas é possível encontrá-la no site do MP-MS. Disponível em: https://www.mpms.mp.br/noticias/2007/09/3480. Acesso em: 08 nov. 2023.

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