Parte 1: O afeto como valor jurídico ou a Vida como ela é.
“Tudo acaba, leitor; é um velho truísmo, a que se pode acrescentar que nem tudo o que dura, dura muito (…) a ideia de que um castelo de vento dura mais que o mesmo vento de que é feito” Dom Casmurro, Machado de Assis.
Desde os 17 anos, quando li Dom Casmurro para o vestibular, fui assolado pela dúvida que desafia a todos desde o Século XIX: teria Capitu traído Bentinho com Escobar e seu filho seria fruto do amor proibido? Seria Ezequiel a prova viva da traição de Capitu?
Apesar das dúvidas legítimas decorrentes da genilalidade da obra, Machado frisa que Capitu era uma mulher cheia de mistérios e seus olhos uma dádiva do diabo.[1]
Da obra de Machado vem a questão jurídica: ainda que Capitu efetivamente tivesse traído Bentinho e Ezequiel não fosse seu filho biológico, para o Direito a paternidade socioafetiva prevaleceria ou seria relevante a verdade biológica?
Foram 217 anos de angústia e quem “resolveu” a questão não foi algum crítico literário, nem mesmo algum manuscrito de Machado de Assis, mas sim o Supremo Tribunal Federalna decisão da Repercussão Geral 622.
Demorei muito para escrever sobre a decisão em questão que admitiu no Brasil a multiparentalidade. A demora se deveu a minha resistência pessoal em aceitar que importante parcela de minha crença como professor de Direito de Família ruiu naquele fatídico dia 29 de setembro de 2016.
Foi o dia em que o STF decidiu o Recurso Extraordinário 898.060 com a seguinte repercussão geral: “A paternidade socioafetiva, declarada ou não em registro, não impede o reconhecimento do vínculo de filiação concomitante, baseada na origem biológica, com os efeitos jurídicos próprios”.
Para explicar a questão, de maneira adequada e científica, ouvi atentamente as palavras de Ricardo Calderón: “Simão, essa é uma visão da decisão, mas há outra, também possível.” Assim resolvi finalmente escrever essas linhas que terão como premissa a minha concepção do afeto, depois a leitura possível da decisão em comento e por fim a leitura ideal.
I – Afeto versus identidade genética.
Há muito tempo aprendi com Giselle Groeninga o conceito de afeto e sua importância para o direito de família. Afeto vem do verbo afetar, ou seja, quem tem afeto tem convívio, interfere na vida de outro. Afeto é a manifestação de desejo de vida (amor, libido) e do desejo de morte (ódio). Afeto não se opõe ao ódio, mas sim a indiferença. O afeto não interessa em potência, mas sim quando se manifesta em uma relação. O afeto é construção que baseia a relação com o outro.
A paternidade é um dado afetivo ou biológico? A pergunta é capciosa, mas de fácil resposta. A paternidade é um dado puramente afetivo. Sim, a frase pode chocar se pensada à luz da vida forense. Apenas se pensada pelo viés do processo de investigação de paternidade o DNA, a biologia tem alguma importância.
Vou demonstrar a total desimportância da biologia pra fins de relação paterno-filial com apenas dois argumentos.
O primeiro é a presunção pater is est. No momento do registro da criança, sendo a mulher casada, basta que essa tenha em mãos a DNV (declaração de nascido vivo) e sua certidão de casamento para que a criança tenha como pai o marido de sua mãe. Não se exige exame hematológico para que haja o registro em nome do pai.
Se, por outro lado, certo homem resolver registrar como sua a criança, basta que ele se dirija ao Registro Civil com a DNV e dizer “é meu filho”. Não se exige DNA para o registro.
O segundo argumento é social. Quem está lendo esse artigo e tem certeza que é filho biológico daquele homem a quem você chama de pai? Senhores leitores, quantos dos senhores fizeram exame de DNA para terem a certeza que aquele que o criou, aquele que o registrou é efetivamente seu pai biológico? Na regra da vida, eu identifico como pai aquele que me cria, sem qualquer preocupação com a questão biológica.
Assim, deve-se frisar que a ascendência genética não se confunde com paternidade. Isso é óbvio ululante, utilizando o termo de Nelson Rodrigues. Explico.
O doador de esperma, na hipótese de técnica de reprodução assistida heteróloga, não é pai, mas apenas ascendente genético. Não há dois pais.
No caso de adoção, há rompimento dos vínculos de filiação com a família genética, ou seja, o filho terá apenas o pai adotivo, sendo que aquele que um dia foi seu pai assume o status apenas de ascendente genético. Não há dois pais.
O homem que desconhece ter um filho biológico (porque sua namorada não contou da gravidez, por exemplo) e um dia descobre que esse filho foi criado por outro homem, a quem chama de pai, não é pai, mas apenas ascendente genético.
Em suma, pai é quem cria e estabelece vínculos afetivos. Pai não é quem contribui com material genético. E para você que acha absurda a minha afirmação, lanço uma questão: nas hipóteses das crianças nascidas pela técnica de reprodução assistida adotadas pelo Dr. Roger Abdelmassih, que fazia barbaridades utilizando inclusive o próprio esperma, o pai é aquele que criou como filho (pois acreditava ser pai biológico) ou o médico Abdelmassih?
Caro leitor, quem é, em sua opinião, o pai dessas centenas de pessoas?
Em suma, para mim sempre prevalece o afeto. Pai é quem cria, independentemente de vínculos genéticos, biológicos. A presença dos traços biológicos é irrelevante.
[1] Diz José Dias:”Capitu, apesar daqueles olhos que o diabo lhe deu…Você já reparou nos olhos dela? São assim de cigana oblíqua e dissimulada.”
Para você citar:
SIMÃO, José Fernando. A multiparentalidade está admitida e com repercussão geral. Vitória ou derrota do afeto?. Jornal Carta Forense, 02 dez. 2016.