A desnecessidade de uma teoria geral da obrigação empresarial e os equívocos do projeto de Código Comercial Texto de autoria de José Fernando Simão e Marcello Kairalla

I – Unificar ou não unificar: eis a questão!

A unificação do direito não é questão recente nos debates jurídicos. Já em 1976 Limongi França, em seu “La unificación del derecho obligacional y contractual latino-americano“, expôs os motivos pelos quais acreditava na unificação do direito. Aliás, o autor coloca como pressuposto para a integração comunitária, econômica, política e social, a integração jurídica. E, mais além, afirma que a integração deve se dar em dois âmbitos, o externo e o interno, aquele por meio de tratados, convenções e protocolos e este pela unificação do Direito Privado1.

Limongi França explicava que havia severa dificuldade na unificação de searas como o direito de família, em razão das muito arraigadas tradições e dos costumes milenares de cada povo. A unificação dos ramos contratual e obrigacional do direito privado, por outro lado, seria uma “impostergável necessidade” como meio para superação de conflitos econômicos dentro da comunidade2.

Isso foi afirmado, pois o direito latino-americano possui, grosso modo, as mesmas raízes históricas, quais sejam, primeiramente romana, entre nós fundante das principais regras de direito privado, mas também dos direitos godo, canônico, comum e, posteriormente, ibérico, cujo maior exemplo são as Ordenações Filipinas. Mas as influências comuns não cessaram, pois nos séculos XIX e XX toda a América Latina foi grandemente influenciada pelos códigos civis de Alemanha e França. Dúvidas não há, portanto, que todo o ordenamento privado desses países bebeu da mesma fonte.

É verdade que Limongi França, ao descrever o Projeto de Código Civil do Chile, narra que circunstâncias peculiares de cada país influenciaram na elaboração de seus respectivos códigos3. Isso vale para todos os países. Contudo, essas peculiaridades não desnaturaram o fato de os ordenamentos serem essencialmente iguais, de modo que seria recomendável pensar na sua unificação, diante das raízes comuns e da “massa de investimentos”. A função da unificação é simples: facilitar as trocas econômicas entre os diversos países de tradição romano-germânica.

A unificação do direito privado traria facilidade de transações econômicas ou, na linguagem de Williamson, uma redução dos custos de transação4.

Segundo a corrente pró-unificação, militam em favor o fato de que na América Latina há uma quase unidade cultural e linguística. Haveria, nessa região do globo, uma universalidade da formação etnográfica e cultural, de modo que a América Latina seria, portanto, o “primeiro caminho viável para a unificação universal do Direito”. Ademais, as regras dos Códigos Civis são afins, como visto, somente com pequenas mudanças em razão de peculiaridades regionais.

Ora, se com razão se defendeu a unificação latina das obrigações, com mais razão ainda se deve defender a unificação do direito obrigacional interno.

Aqui, com o advento do Código Civil de 2002, procedemos à unificação da teoria geral das obrigações. Isto com base na ideia essencial de Teixeira de Freitas, de razão comum. Não poderiam duas situações fáticas idênticas, com iguais razões de ser, possuir regramento distinto. Já em 1867, Teixeira de Freitas, vendo tal inaceitável incompatibilidade, advogou pela unificação do direito civil e do comercial, ao defender o Esbôço como Código de Direito Privado. Na carta enviada ao Ministro da Justiça em 1867, deixou claro que a unificação era o único modo que “corrigirá o vício de quase todos os trabalhos legislativos, que é o de tomar a parte pelo todo”5.

Na preciosa obra de Silvio Meira, há transcrição integral de cartas de Teixeira de Freitas, em especial uma enviada ao Ministro da Justiça que o havia contratado para elaboração do Código Civil, na qual disse: “não há tipo para essa arbitrária separação de leis a que deu-se o nome de Direito Comercial ou Código Comercial; pois que todos os atos da vida jurídica, excetuados os benéficos, podem ser comerciais ou não comerciais, isto é, tanto podem ter por fim o lucro pecuniário, como outra satisfação de existência”. Em síntese, quase qualquer ato da vida pode ser civil ou comercial, com exceção aos gratuitos.

Assinala Teixeira que são exceções, “raros casos”, nos quais é “necessário distinguir o fim comercial, por motivo da diversidade nos efeitos jurídicos”6. Não se pode, então, normatizar com base na exceção. Nos dizeres de Teixeira, a unificação “é o plano que nos permitirá erigir um monumento glorioso, plantar as verdadeiras bases da codificação, prestar à ciência um serviço assinalado”7.

É de se perguntar, outrossim, a quem interessa a “dessistematização” do direito privado. A quem interessa o retorno das discussões se determinada obrigação é ou não comercial. E, ainda, a quem interessa o retrocesso centenário ao direito compartimentado em um cenário cada vez mais globalizado e unificado?

O propósito do presente breve texto é, então, responder as questões formuladas e analisar a ideia da unidade do direito das obrigações, especialmente de sua teoria geral, no ensejo da discussão do projeto de um novo Código Comercial que, entre outras alterações, pretende criar uma teoria das obrigações comerciais autônoma.

II – Substitutivo ao Projeto de Lei do Senado 487/13

O substitutivo ao Projeto de lei do Senado 487/13, que pretende instituir um novo Código Comercial, foi amplamente debatido, em Brasília, por diversos juristas convidados na sexta-feira dia 8/11/2019. Dois pontos merecem reflexão nas presentes linhas.

O Livro IV do Projeto tem por título “Das obrigações empresariais” e está dividido em três títulos com seus vários capítulos conforme tabela que se segue:

Passamos a abordar os problemas que os dispositivos que pretendem criar regras para o inadimplemento da obrigação empresarial (Título I, Capítulo II) criam para o sistema.

O artigo 111 do Projeto é inútil. Repete o Código Civil com imprecisão teórica.

Equivoca-se o artigo ao não permitir a resolução contratual. Exigir que a parte prejudicada seja mantida em um vínculo ainda que a prestação tenha se tornado inútil ao credor, é ignorar a realidade fática contratual. É o caso do vendedor (empresário) de matéria-prima que, por desídia, deixa o objeto perecer. Se o credor não tem interesse na prestação após o perecimento, pela boa técnica, pedirá a resolução do contrato e as perdas e danos. O projeto, de maneira atécnica, prevê apenas as perdas e danos que, por sinal, podem ser exigidas com a resolução ou mesmo com a exigência de cumprimento da prestação.

Seguindo no exemplo acima exposto, trata-se do caso de o vendedor (empresário) que, mesmo que haja atrasa na entrega de matéria prima, ainda se submente à vontade do comprador, que ainda pode ter interesse em exigir a matéria-prima, mais perdas e danos. É por isso que a redação do art. 475 do Código Civil é mais técnica e suficiente para o que pretende o artigo 111 do projeto.

Pior são os incisos do dispositivo que mencionam consectários: (i) correção monetária; (ii) juros; (iii) indenização pelas perdas e danos derivados da mora; e (iv) cláusula penal.

Note-se que a redação do inciso III menciona “perdas e danos derivados da mora” apesar de o caput do dispositivo falar em perdas e danos. A atecnia grita! Novamente transcrevemos dois dispositivos do Código Civil:

Inadimplemento absoluto e mora são distintos segundo a boa doutrina. Na mora a prestação ainda é útil ao credor enquanto no inadimplemento absoluto não é mais. É por isso que a mora pode ser purgada (emendatio morae).

Mas do que trata o artigo 111 do projeto? De mora ou de inadimplemento absoluto? Caput e inciso III não dialogam entre si. Há uma confusão categorial evidente por tratar de duas situações distintas em um mesmo dispositivo. Melhor seria que o projeto copiasse os artigos do Código Civil cuja redação não merece reparos.

Será que o projeto de Código Comercial pretende excluir dos efeitos da mora e do inadimplemento absoluto o pagamento de honorários advocatícios? Se pretende, que o faça expressamente sob pena de aplicação subsidiária do Código Civil e determinação de pagamento de honorários pelo inadimplente.

O que faz a cláusula penal como consectário do inadimplemento contratual se, a cláusula penal, segundo a melhor doutrina (por todos Otávio Luiz Rodrigues Junior8) é exatamente a prefixação das perdas e danos? Poderia o credor cobrar as perdas e danos (caput do art. 111), depois novamente as perdas e danos (inciso III do art. 111) e ainda a cláusula penal? Resposta: não.

É por isso que, com melhor técnica, o Código Civil não inclui a cláusula penal como efeito da mora ou do inadimplemento absoluto. A confusa redação do projeto pode levar a crer (em erro) que o credor pode cobrar as perdas e danos somadas à cláusula penal. A função histórica da cláusula penal é de prefixar as perdas e danos (livrando o credor do ônus de provar o dano e sua extensão), bem como de limitar a responsabilidade civil (vide texto do artigo 416 do CC).

Teria o projeto de código comercial reinventado a cláusula penal? Toda a categoria passaria a ser puramente punitiva sem nenhuma limitação como as previstas nos artigos 412 (o valor da cominação imposta na cláusula penal não pode exceder o da obrigação principal.) e 413 (a penalidade deve ser reduzida equitativamente pelo juiz se a obrigação principal tiver sido cumprida em parte, ou se o montante da penalidade for manifestamente excessivo, tendo-se em vista a natureza e a finalidade do negócio) do CC?

Sobre a correção monetária, o ajuste do valor de compra da moeda em razão da inflação, o projeto demonstra sua completa falta de operabilidade, pois assim prevê: “§ 1º. Se não constar do contrato ou título de crédito, o índice da correção monetária será o setorial que medir a variação dos custos no segmento de mercado em que atua o credor, e, em sua falta, prevalecerá o índice geral usualmente adotado pelos empresários”. Admitir correção monetária pelo “índice geralmente adotado pelos empresários” é de uma inconveniência ímpar, pois será enorme o debate sobre qual índice seria esse e muito problemática a dilação probatória para se “descobrir” qual índice aplicar. A indeterminação da taxa de juros do artigo 403 do CC revela que a ausência de um valor fixo leva o sistema ao colapso, pois atualmente são intermináveis os debates na doutrina e na jurisprudência se a taxa legal de juros de mora é de 1% ao mês ou seria a SELIC.

Melhor seria que toda essa “teoria geral” que o projeto “cria” seja retirada do texto. Isso porque as novas regras criam mais insegurança e confusão do que operabilidade ao sistema obrigacional. Alguns poucos ajustes ao texto do Código Civil (por exemplo sobre os percentuais de juros de mora) resolvem a questão sem quebrar a espinha dorsal do sistema, distorcendo-o.

Por fim, cabe uma breve análise das regras previstas para a validade dos negócios jurídicos empresariais (Título II, Capítulo I). Esse trecho do projeto é assustador para quem conhece Teoria Geral do Direito e os ensinamentos da doutrina.

Toda a premissa do Projeto nesse título é a seguinte: “art. 118. O negócio jurídico empresarial nulo pode ser confirmado, por retificação ou ratificação, a qualquer tempo, mesmo que já iniciada a ação de nulidade”.

Ação de nulidade? Falta um adjetivo. Ação declaratória de nulidade. Confirmar negócio jurídico nulo? Segundo alguns, isso reduziria a insegurança jurídica. Bem, se assim fosse, caberia ao projeto especificar em quais hipóteses o negócio jurídico nulo se convalida, ao invés de criar uma regra geral gravosa ao sistema.

Causa perplexidade o fato de a ratificação poder ser expressa (por declaração ou manifestação de vontades) ou tácita (pela conduta das partes). Cria o projeto a manifestação por retificação. Retificar é corrigir, alterar. A leitura do texto do Projeto implica a seguinte questão: a simples correção convalida o negócio nulo, ainda que seja uma mudança de data ou a alteração do conteúdo de uma cláusula?

E pior: “art. 119. O negócio jurídico empresarial nulo convalesce com o decurso do tempo” e no prazo de 2 anos (art. 128, §1º do projeto).

Qual é o problema de se admitir a confirmação (tácita ou expressa do negócio jurídico nulo) ou mesmo sua convalidação após dois anos? O problema é que o projeto ignora as razões que podem levar à nulidade absoluta do negócio jurídico previstas no art. 166 do CC. Vejamos apenas os incisos III e VI:

“III – o motivo determinante, comum a ambas as partes, for ilícito; (…)

VI – tiver por objetivo fraudar lei imperativa;”

Sim, o projeto de Código Comercial pretende tornar válido, por decurso do prazo, negócios jurídicos em fraude à lei imperativa e cujo motivo seja ilícito. E o exemplo da doutrina que é recorrente (o menor com 15 anos que vota em assembleia e depois de 20 anos pretende ter a declaração de nulidade) está nas hipóteses de não convalidação do nulo (inciso I do art. 122 do projeto).

Não seria melhor ao sistema prever hipóteses de negócios jurídicos que podem ser ratificados e que se convalidam com decurso do tempo ao invés de se criar uma regra geral que permite aos contratantes fraudarem a lei imperativa?

O dispositivo projetado esquece de “combinar com os russos”. Se o negócio jurídico empresarial for simulado em fraude ao fisco, após dois anos a nulidade desaparece. O fisco, como terceiro, está impedido de demandar a nulidade para receber o tributo devido? A resposta é não. A solução seria a cobrança de perdas e danos. Pela análise de custos, passa a ser vantajosa a celebração de negócios jurídicos nulos, contando as partes com o beneplácito da lei, pois após 2 anos nada poderá ser reclamado, salvo as perdas e danos cuja prova, no mais das vezes, é difícil e custosa.

Novamente, o projeto cria novidades difíceis de se compreender e que, portanto, gerarão dúvidas à aplicação do sistema. Melhor manter a parte geral do Código Civil, com alterações pontuais em matérias específicas.

III – Notas conclusivas

Conforme exposto, o Projeto de Código Comercial está repleto de atecnias. Falta tanto precisão técnica e quanto cuidado às categorias jurídicas. O projeto falha ao delimitar a resolução contratual, falha ao interpretar e definir a mora e falha ao incluir a cláusula penal como efeito da mora.

Mas as falhas a essas supra narradas não se restringem. O projeto quando inova, inova mal. Dinamitar o sistema de nulidades, fazendo com que elas, em regra, convalesçam, é tenebroso para o direito. Beneficia e facilita a fraude e aqueles que atuam em desvio às regras de padrão de conduta.

Diante das atecnias o projeto gera mais dúvidas que soluções na aplicação das teorias gerais das obrigações e dos negócios jurídicos. Melhor seria retirar totalmente do Projeto o Título I, capítulo II e o Título II, capítulo I, o que não traria quaisquer prejuízos à operabilidade do sistema, mas, ao contrário, confortaria os empresários com regras já conhecidas e funcionais há décadas, senão séculos ou milênios. É óbvio que isso não afasta eventual necessidade de ajustes pontuais, para suprir demandas específicas da prática, dissolvendo controvérsias atualmente existentes. Não é necessário matar o paciente para curar o resfriado.

*José Fernando Simão é livre-docente, doutor e mestre pela Faculdade de Direito da USP. Professor Associado do Departamento de Direito Civil da Faculdade de Direito da USP. Segundo Secretário do IBDCONT. Presidente do Conselho Consultivo do IBRADIM. Advogado e parecerista.

*Marcello Kairalla é mestrando em Direito Civil na Faculdade de Direito da USP. Advogado.

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1 FRANÇA, Rubens Limongi. La unificación del derecho obligacional y contractual latino-americano. São Paulo: Revista dos Tribunais, 1976.

2 FRANÇA, Rubens Limongi. La unificación del derecho obligacional y contractual latino-americano. São Paulo: Revista dos Tribunais, 1976.

3 Consta da “Mensaje de Montt e Ovalle, sobre a originalidade do texto Projeto chileno: ´Desde luego concebiveis que no nos hallamos em el caso de copiar a la letra ninguno de los códigos modernos. Era menester servirse de ellos sin perder de vista las circunstancias peculiares de nuestro país. Pero em lo que estas no presentaban obstáculos reales, no se há trepidado em introducir provechosas inovaciones´” FRANÇA, Rubens Limongi. La unificación del derecho obligacional y contractual latino-americano. São Paulo: Revista dos Tribunais, 1976, p. 76.

4 Ver: WILLIAMSON. Oliver E. The Economic Institutions of Capitalism: firms, markets, relational contracting. London: Collier Macmillan Publishers, 1985. E também, do mesmo autor: Transaction Cost Economics: How it works; where it is headed. IN: De Economist. Netherlands, vol. 146 (1151), n. 1, 1998.

5 MEIRA, Silvio. Teixeira de Freitas – o Jurisconsulto do Império: Vida e Obra. São Paulo: Editora Olympio, 1979, pp. 347-365.

6 Continua o autor, exemplificando com a maestria de praxe: “… os contratos em geral, o mandato, a compra e venda, a troca, a locação, o mútuo, a fiança, a hipoteca, o penhor, o depósito, as sociedades, os pagamentos, a novação, a compensação, a prescrição e os seguros, voltarão a seus respectivos grémios no Código Civil, onde as inscrições são as mesmas. O mandato completar-se-á com as disposições sobre correctores, agentes de leilões e comissários. A locação de serviços com as relativas a feitores, guarda-livros, caixeiros, comissários de transportes, capitães de navios, pilotos, contramestres e gente da tripulação. O depósito com as concernentes a trapicheiros e administradores de armazéns. A troca com o contrato de câmbio e as letras de câmbio. A locação de bens com os fretamentos. O mútuo com as contascorrentes, letras de terra, notas promissórias e empréstimos a risco. A indemnização do dano completar-se-á com as avarias”. MEIRA, Silvio. Teixeira de Freitas – o Jurisconsulto do Império: Vida e Obra. São Paulo: Editora Olympio, 1979, pp. 347-365.

7 MEIRA, Silvio. Teixeira de Freitas – o Jurisconsulto do Império: Vida e Obra. São Paulo: Editora Olympio, 1979, pp. 347-365.

8 RODRIGUES JÚNIOR, Otavio Luiz; JUNQUEIRA DE AZEVEDO, Antonio. Função, natureza e modificação da cláusula penal no direito civil brasileiro. 2006.Universidade de São Paulo, São Paulo, 2006.

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