Não traz o Código Civil o conceito de testamento. O revogado diploma dizia que testamento é “o ato revogável pelo qual alguém, de conformidade com a lei, dispõe, no todo ou em parte, do seu patrimônio, para depois da sua morte” (art. 1.626 do CC/1916). A ausência de definição no novo diploma segue a idéia segundo a qual não cabe ao legislador dar conceitos dos institutos. Mesmo porque, ao conceituar o testamento, severas críticas sofreu o diploma revogado, já que a doutrina considerava incompleta a definição contida no art. 1.626.
Pondera Silvio Rodrigues que as críticas existiam “não só por omitir a circunstância de ser o testamento ato pessoal, unilateral, solene e gratuito, como também por circunscrever o objeto do testamento à mera disposição de bens” (Direito civil, 2002, v. 7, p. 145).
Em nossa opinião, o testamento é um negócio jurídico unilateral, personalíssimo e revogável, pelo qual o testador faz disposições de caráter patrimonial ou não, para depois de sua morte.(Flávio Tartuce e José Fernando Simão, Direito das Sucessões, Editora Método, v. 6).
Não existe relação necessária entre testamento e patrimônio. Nada impede que o testador só mencione questões patrimoniais em seu ato de última vontade; pode, também, nada dizer a esse respeito. Por fim, o testamento pode conter os dois tipos de disposições: de caráter patrimonial e não patrimonial (art. 1.857, § 2.º, do CC).
Entretanto, deve-se reconhecer que na maioria dos casos, a pessoa elabora testamento por estar preocupada com o destino dos bens após a sua morte. Esse caráter fortemente patrimonial do testamento exige do legislador uma preocupação grande com a sua veracidade e que represente, de maneira inequívoca a vontade do falecido.
Para garantir que a vontade do falecido seja realmente aquela presente no ato de última vontade, quanto ao testamento, a lei traz uma série de formalidades essenciais para sua validade.
Se não forem seguidas as formas e as formalidades previstas em lei, o testamento será nulo (art. 166 do CC), não se admitindo no Brasil a ampla liberdade de opção, ou seja, a autonomia privada plena para testar. Pelo contrário, se o testamento não seguir alguma das modalidades em estudo, será considerado nulo e não produzirá os efeitos almejados pelo testador.
Exemplificando, não se admite o chamado testamento nuncupativo em que o testador verbalmente narra perante testemunhas sua última vontade, quando está prestes a morrer. A lei só admite o casamento nuncupativo (in extremis) e o testamento militar nuncupativo para os feridos em guerra (art. 1.896 do CC).
Assim, aquela situação clássica de filmes, livros e novelas em que o falecido, muito adoentado, no leito de morte, reúne a família e dita sua última vontade é impossível no direito brasileiro.
O Código Civil prevê apenas seis formas de se testar. As formas ordinárias ou comuns de testar são também conhecidas por formas comuns ou vulgares, estão previstas no artigo 1.862 do CC e são as seguintes: o testamento público (arts. 1.864 a 1.867 do CC); o testamento cerrado (arts. 1.868 a 1.875 do CC); eo testamento particular (arts. 1.876 a 1.880 do CC).
A essas formas ordinárias se opõem as chamadas formas extraordinárias ou especiais, que são admitidas pelo legislador excepcionalmente e nos casos especificamente admitidos por lei: os testamentos militar, marítimo e aeronáutico.
Para as reflexões do presente texto, interessa-nos, apenas o testamento particular ou hológrafo. Conforme bem explica Giselda Maria Fernandes Novaes Hironaka, “determina a lei que o próprio testador redija, leia e assine. Assim, a holografia – ser inteiramente escrito – e a autografia – ser escrito pelo testador – são características do testamento particular que se têm como essenciais, restando infirmado de nulidade se ocorrer sua inobservância” (CAHALI e HIRONAKA, Curso avançado…, 2003, v. 6, p. 287). Isso não quer dizer que o testador não se possa utilizar de meios mecânicos, tais como um computador, para redigir o testamento, ou redigi-lo de próprio punho (art. 1.876 do CC).
Se redigido de próprio punho, são requisitos essenciais à sua validade que o testamento seja lido e assinado por quem o escreveu, na presença de pelo menos três testemunhas, que o devem subscrever (art. 1.876, § 1.º, do CC). Note-se que “quem escreveu” só pode ter sido o próprio testador, já que o testamento particular escrito ou assinado a rogo, a pedido, é nulo de pleno direito, por desrespeito à forma (art. 166, IV, do CC).
O revogado Código Civil exigia a presença de cinco testemunhas. É de se observar que a redução facilita o cumprimento da exigência. Se o negócio foi celebrado na vigência do Código Civil revogado, só será válido se contiver cinco testemunhas, ainda que a morte ocorra na vigência do novo Código Civil. Isso porque, quanto à validade do negócio, aplica-se a lei vigente no momento da celebração (art. 2035 do CC/02).
Se faltarem testemunhas, por morte ou ausência, e se pelo menos uma delas o reconhecer, o testamento poderá ser confirmado, se, a critério do juiz, houver prova suficiente de sua veracidade (art. 1.878, parágrafo único, do CC). Sobre a hipótese em questão, bem lembra Sílvio de Salvo Venosa que “o testamento, qualquer que seja sua modalidade, é um dos negócios mais suscetíveis a fraudes e ataques de nulidade. Toda a carga de responsabilidade, neste caso, é transferida ao juiz que poderá confirmar o testamento perante apenas uma das testemunhas” (Direito civil, 2003, v. 7, p. 178).
O Código Civil de 2002 traz inovação importante em matéria de testamento particular. Isso porque, em circunstâncias excepcionais declaradas na cédula, o testamento particular de próprio punho e assinado pelo testador, sem testemunhas, poderá ser confirmado, a critério do juiz (art. 1.879 do CC). Em realidade, frisa Zeno Veloso que o Código cria uma modalidade diferente de testamento, ou seja, o testamento elaborado em circunstâncias excepcionais, que impedem ou dificultam extremamente o testador de se valer de outras formas de testar ou do próprio testamento particular em sua configuração normal (Novo Código Civil…, 2006, p. 1574).
Quanto ao último caso, devemos observar que a expressão circunstâncias excepcionais, constante do art. 1.879, constitui uma cláusula geral, um conceito aberto deixado pelo legislador para preenchimento caso a caso. Ora, diversas são as situações em que é possível imaginar alguém impedido de testar normalmente, como, por exemplo, se alguém estiver correndo sério perigo de vida em razão de uma onda de violência que atinge uma grande cidade; se estiver perdido na selva sem conseguir achar a civilização; ou, por fim, em sendo um náufrago perdido em uma ilha.
Exemplo colhido do TJ/SP, além de esclarecedor, preenche de maneira adequada a expressão e atende ao espírito da lei. Determinada pessoa, prestes a fazer uma séria cirurgia, temeroso quanto à possibilidade de falecimento, lavrou de próprio punho testamento particular, que não contou com a presença de testemunhas.
“TESTAMENTO – Particular – Excepcional – Documento lavrado de próprio punho, quando da iminência de o disponente, temeroso de vir a falecer, ser submetido a cirurgia – Validade – Excepcionalidade devidamente declarada, consistente no temor da morte quando do procedimento cirúrgico – Ausência de identificação das testemunhas – Irrelevância – Dispensa das mesmas pelo art. 1.879 do CC – Recurso provido.
A excepcionalidade exigida está, por sua vez, devidamente declarada no documento em exame. O testador fez consignar expressamente que temia por sua morte na cirurgia; por isso, naquele ato, deixava seu imóvel à apelante que, segundo consta, com ele vivia em regime de união estável. Justamente a proximidade da morte do dispoente e a impossibilidade dele recorrer às formas ordinárias têm sido apontadas pela doutrina como exemplo de situações excepcionais autorizadoras do ato (Apelação Cível nº 434.146-4/0-00, 7ª Turma de Direito Privado, Rel Des. Álvaro Passos, j. )
O julgado se revela perfeito. Se a pessoa está a um passo de realizar importante cirurgia que pode lhe causar a morte, certamente não terá tempo de redigir o testamento com todas as formalidades que a lei impõe. No caso em questão, após longos anos de união estável, antes da cirurgia, o testador, não dispondo de herdeiros necessários, manifesta por escrito sua vontade de deixar a companheira determinado imóvel.
A lei sacrifica a segurança jurídica, mas privilegia a vontade do falecido que, naquele caso, foi demonstrada inequivocamente pelas testemunhas.