Uma tese: prescrição, início da contagem do prazo e a decisão do TJ/SP

I – Uma tese

O ato de escrever uma tese, no sentido acadêmico da palavra, é um ato que desafia aquele que decide fazê-lo.

Tese, do latim, thesis, é um “estudo, pesquisa sobre determinado assunto, que deve ser demonstrado. Afirmação de um problema, de uma técnica, seguida de argumentos demonstrativos. O cunho característico das teses é a nota individual e própria do autor, a sua contribuição para o progresso do assunto estudado, sua originalidade”.[1]

O que se vê, infelizmente, com certa frequência nos cursos de Direito, é que cada vez menos há originalidade nas teses apresentadas e defendidas. Há sim, pesquisas profundas que em nada inovam o que é próprio de dissertações de mestrado.

Ainda me lembro a arguição de uma tese, por parte do saudoso Prof. Antonio Junqueira de Azevedo, em que este apontava ao candidato, com precisão, a inexistência de uma tese.

Costumo dizer aos alunos que pretendem escrever uma tese que está deve ser delimitada por uma frase: “minha tese é…”. A impossibilidade de resumir a tese em uma frase já indica que o candidato não tem uma tese

II – A minha tese

Quando resolvi escrever minha Livre-docência (cujo depósito ocorreu em 2011), optei por um tema da Parte Geral do Código Civil: prescrição e decadência.

Em que pesem as dificuldades todas, inclusive de compreensão por alguns destinatários (poucos, é verdade), apresentei efetivamente uma tese, que resumo levando em conta prescrição versus decadência, responsabilidade contratual versus extracontratual e direitos disponíveis versus indisponíveis.

Posso resumir a minha tese em alguns parágrafos para dar clareza ao leitor de minhas ideias.

Quanto à responsabilidade contratual, o prazo prescricional se inicia pouco importando que o credor conheça ou não o fato de o devedor ter descumprido a avença firmada. Em realidade, na hipótese de inadimplemento da obrigação contratual, a lei presume que o credor terá a diligência de cuidar de seu maior interesse: o adimplemento contratual. Para o ordenamento não é relevante o fato de o credor desconhecer o inadimplemento contratual do devedor. Se desconhece, deveria conhecer, por uma questão de diligência com a execução do contrato. Na obrigação contratual, o valor segurança se revela evidente. Os prazos se iniciam com a violação, tenha o credor ciência ou não do inadimplemento.

Com relação à responsabilidade civil extracontratual, a vítima não pode ser punida, como se negligente fosse, se sequer tinha ciência do dano sofrido. Aqui o seguro é injusto. Não se pode, nessa espécie de direito subjetivo, punir o titular que não exerceu sua pretensão simplesmente porque a ignorava. O prazo prescricional só se inicia com o dano-prejuízo e sua ciência pela vítima.

Contudo, duas ponderações se fazem necessárias A primeira é que caberá à vítima fazer a prova do momento exato da ciência, para que se permita o cômputo do prazo prescricional, e, se não provar quando teve a ciência, o juiz aplicará o texto da lei para, utilizando-se do momento do dano-evento, decidir se a pretensão prescreveu ou não. A segunda é que a noção de conhecimento, de ciência, se dará necessariamente de acordo com o standard do homem médio, ou seja, de acordo com a conduta que se espera da pessoa comum. Em outras palavras, se, no caso concreto, o homem médio teria conhecimento do fato a ensejar o início da prescrição, mas aquele credor, especificamente, não o teve, o prazo se iniciará de acordo com esse padrão.

Já em se tratando de decadência, pode-se concluir o seguinte. Para a conciliação dos valores da justiça e da segurança, isto é, para que a segurança seja fonte de justiça e não desculpa para injustiças, entende-se que, em se tratando de direitos patrimoniais, o prazo decadencial se inicia com a ciência da realização do negócio ou do fato que permite o exercício do direito potestativo (v.g. compra e venda anulável por lesão ou estado de perigo). Todavia, em se tratando de dispositivo legal que cuida de direito indisponível, em que a segurança jurídica se revela fundamental, efetivamente, os prazos devem se iniciar a partir da conclusão do ato ou negócio (v.g. casamento anulável por erro ou coação).

Como concluí minha tese 2011, “em suma, a conclusão indica que, com a definição de prescrição e de decadência, bem como com a conciliação dos valores da justiça e da segurança quanto ao início dos prazos, menor é a angústia de se escrever sobre o tempo e seus efeitos para o direito civil”.

III – A aplicação da minha tese.

E o que realmente falta ao trabalho acadêmica é sua adesão à realidade social, que se dá quando o trabalho é citado pelos Tribunais.

Foi o que ocorreu com a minha tese quando, na Apelação Cível no 0193509-09.2008.8.26.0100, o TJ/SP decidia o início do prazo prescricional em ação indenizatória movida pela massa falida do Banco Santos contra certas pessoas que supostamente praticaram fraudes causando danos ao autor.

No caso concreto houve um lapso temporal entre a suposta prática do ato ilícito pelos réus e o seu conhecimento pelo Banco autor. O início do prazo se contaria da data do ilícito danoso ou daquele em que o ilícito foi conhecido?

E com base em meus estudos afirma o Relator:

“A comunidade de credores do BANCO SANTOS (hoje massa falida), em tese lesada pelas operações fraudulentas, não tinha como ter conhecimento do desvio de recursos, pois não participava da administração da instituição financeira”.

Logo conciliando os valores de Justiça e da Segurança Jurídica, o prazo prescricional não poderia se iniciar quando os atos lesivos foram praticados. E com base na minha tese conclui:

“prazo trienal deve contar a partir da intervenção, ou, na interpretação mais generosa do Eminente Desembargador Revisor, da data em que o relatório da equipe de auditoria das contas do BANCO SANTOS foi juntada aos autos da liquidação extrajudicial, e se abriu a oportunidade de a comunidade de credores, presentada pelo liquidante, conhecer a fraude” (grifei)

Em suma, o Acórdão da lavra de Francisco Eduardo Loureiro efetiva a tese por mim defendida e concilia de maneira impecável os valores da Justiça e da Segurança. É motivo de enorme orgulho ser citado por tão respeitável jurista.


[1].   Grande dicionário etimológico prosódico da Língua Portuguesa, Saraiva, 1967, p. 3955.

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