O Tempo e o Direito

“O tempo é o juiz que marca a cadência das coisas, para permitir o navegar, o não soçobrar; o levar a nave da vida para o porto certo, na hora certa, na medida certa, ainda que o fogo consuma a balsa, faça o mar efervescer e comprometa a estabilidade da vida; ainda que o vento sopre com força demais e retire a serenidade da água; ainda que o homem esteja constantemente em perigo. Porque quem permanece em casa não corre tantos riscos, mas quem peregrina precisa chegar.” (Rosa Nery, Vínculo obrigacional: relação jurídica de razão-técnica e ciência de proporção)

Segundo Celso Antonio Bandeira de Mello, tempo é neutro e necessariamente idêntico para todos os seres. O que muda é o que ocorreu ao longo dele (Conteúdo jurídico do princípio da igualdade, p. 30).

A despeito dessa pretensa neutralidade do tempo, alguns institutos do direito ensejam reflexão. O tempo tem por efeito a valoração de certos institutos e de certas regras. Conceitos aparentemente imutáveis em certa época histórica são revisitados pela doutrina e assumem novas feições. É, portanto, sob a ótica do efeito transformador do tempo que se analisarão alguns institutos jurídicos.

A abordagem da Lei de Introdução às Normas do Direito Brasileiro (novo nome dado à velha Lei de Introdução ao Código Civil) sobre o direito adquirido, o ato jurídico perfeito e a coisa julgada demonstra que o tempo tem o poder de consolidar as relações jurídicas. Algumas questões, entretanto, merecem atenção para fins de efeitos do tempo. Exemplo disso está no fato de o Poder Judiciário demonstrar ter uma nova visão desses institutos, quando passa a admitir a relativização da coisa julgada.

Claro está que o objetivo da lei ao preservar o direito adquirido, o ato jurídico perfeito e a coisa julgada não é outro senão a garantia de segurança e o fim das incertezas. No mesmo sentido, as lições de Paul Roubier: “O fundamento filosófico da não retroatividade é a necessidade de segurança jurídica e da confiança na estabilidade do direito (Les conflits de lois dans le temps: théorie dite de la non-rétroactivité des lois. Paris: Recueil Sirey, 1929, t. I, p. 483).

Não obstante toda a proteção em nome da segurança jurídica ao direito adquirido, ao ato jurídico perfeito e à coisa julgada, percebe-se que, em determinadas hipóteses, rompe-se com a estabilidade ou perenidade de certas situações jurídicas em homenagem à justiça.

A relativização da coisa jugada material é uma tese extremamente polêmica, que nasceu no seio do Superior Tribunal de Justiça (Min. José Delgado) e que, mesmo entre os que aceitam, só é defendida para casos realmente extraordinários. Essa tese parte da premissa de que nenhum valor constitucional é absoluto, devendo todos eles ser sistematicamente interpretados de modo harmonioso e, consequentemente, aplicando-se à coisa julgada o princípio da proporcionalidade, utilizado para o caso de colisão entre princípios constitucionais (Antônio Carlos de Araújo Cintra, Ada Pellegrini Grinover e Cândido Rangel Dinamarco, Teoria geral do processo. 23. ed. São Paulo: Malheiros, 2007. p. 327-328).

O tema tem sido debatido com frequência no que tange à ação investigatória de paternidade. Algumas decisões proferidas antes da existência do exame de DNA concluíam pela improcedência da demanda, em decorrência da falta de provas, já que o exame de sangue não tinha resultado conclusivo. Com a nova técnica, demandas foram propostas pelos mesmos autores, em face dos mesmos réus, com pedido idêntico àquele anteriormente decidido e cuja decisão foi acobertada pelo manto da coisa julgada.

Em 2 de julho de 2011, em decisão histórica, o STF decidiu pela possibilidade dessa relativização. No julgamento do Recurso Extraordinário n. 363889 entendeu-se que a verdade biológica e o direito a se conhecer a parentalidade se sobrepõem à coisa julgada. Em suma, a decisão confirma que é direito do ser humano conhecer sua história e suas origens, havendo um direito fundamental à informação genética. Entre o princípio da segurança jurídica e o princípio da dignidade da pessoa humana optou-se pelo segundo.

Claro está, quando se admite a relativização da coisa julgada, que há entendimento pela flexibilização da segurança jurídica em favor da justiça.

Outro tema que reflete uma releitura de institutos tradicionais permitida pelo tempo diz respeito aos efeitos da declaração de inconstitucionalidade. Também, na atualidade, quando o Supremo Tribunal Federal, em suas decisões em controle abstrato de inconstitucionalidade de certa norma, proclama se há ou não retroatividade da decisão, os efeitos desta repercutirão de maneira diferente no tempo.

O efeito da declaração de inconstitucionalidade de uma lei é reconhecer que, em razão da nulidade, a norma não teria aptidão para produzir efeitos. Contudo, efeitos foram produzidos. A partir dessa constatação, abandona-se a noção tradicional de que os efeitos do reconhecimento da inconstitucionalidade são necessariamente retroativos (ex tunc) para se admitir a sua modulação.

Isso se verificou, por exemplo, quando o STF entendeu que certa lei criadora da Comissão Permanente de Disciplina da Polícia Civil do Distrito Federal era inconstitucional, mas determinou que os efeitos da declaração só se iniciariam com a publicação da decisão, mantendo eficazes as decisões da comissão em questão[1].

Ainda refletindo sobre o poder transformador do tempo sobre o direito, têm-se as normas do estado de exceção, que apenas têm vigência enquanto a exceção durar. Cessado certo estado de fato, as antigas leis voltam a produzir efeitos.

Ovídio Rizzo Junior retoma a problemática do tempo e seus efeitos sobre o ordenamento ao tratar do estado de exceção. Se a exceção decorrer de uma crise econômica, por exemplo, ela pode ser permanente ou passageira. Se for passageira, suspende-se, pelo tempo necessário, a eficácia do ordenamento para se combater diretamente os fatos que dão origem à crise. A ação governamental, neste caso, tem a finalidade específica de eliminar a própria crise. Com a exceção permanente (nesse estado, não se está diante de um descontrole pontual que se esvai, retornando à normalidade com as medidas tomadas após a suspensão de uma parcela da ordem jurídica), a situação é inversa: atacam-se os efeitos da crise, já que os atos editados pelo governo não podem ir além da minimização dos danos que ela permanentemente provoca (Controle social efetivo de políticas públicas, p. 81).

Por fim, leis antiquíssimas que permanecem inalteradas, sem que haja revogação ou alteração de seu texto, são continuamente reinterpretadas de acordo com os valores do momento da interpretação, e não de sua elaboração[2]. É o poder transformador que o tempo produz em uma regra, a qual, sem ter sido formalmente alterada, passa a ser lida de nova maneira.

Sobre o tema, recomendamos a leitura de nossa obra “Prescrição e Decadência – início dos prazos” lançada recentemente pela Editora Atlas. Em outra coluna, prosseguimos com o Tempo e o Direito Civil.


[1].   (STF, Tribunal Pleno, Embargos de Declaração na ADI n. 3601/DF, Min. Rel. Dias Toffoli, j. 09.09.2010).

[2].   Evidentemente, os artigos do Code Napoleon, de 1804, são interpretados pela doutrina francesa por meio dos valores atuais, e não a partir dos ideais burgueses do século XIX.

Para você citar:

SIMÃO, José Fernando. O tempo e o direito. Jornal Carta Forense, São Paulo, , v. 124, p. B6 – B6, 01 set. 2013.

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