O Código Civil e as decisões dos Tribunais II

A hipoteca, como se sabe, é direito real sobre coisa alheia de garantia que recai sobre bem imóvel. Trata-se de forma importante e muito utilizada de garantia, mormente em se tratando de construção de edifícios.

Os Bancos, na qualidade de financiadores do empreendimento, celebram com a construtora, geralmente proprietária do terreno, contrato de mútuo com garantia hipotecária, que, devidamente registrada, produz seus efeitos erga omnes, ou seja, contra todos em decorrência da publicidade.

Classicamente, a hipoteca é considerada indivisível por força de lei. A sua indivisibilidade decorre dos artigos 758 do Código Civil de 1916 e 1421 do Código Civil de 2002. Qual seria a conseqüência desta indivisibilidade? O pagamento parcial da hipoteca não reduz a garantia e, ainda, se a garantir recair sobre mais de um imóvel, o pagamento parcial não acarreta a liberação de um ou de alguns destes bens.

É bem verdade que em razão de problemas práticos verificados quando as construtoras tomavam dinheiro do consumidor e não repassavam aos Bancos que executavam a hipoteca em prejuízo de terceiros adimplentes, que o Superior Tribunal de Justiça editou a Súmula 308:

A hipoteca firmada entre a construtora e o agente financeiro, anterior ou posterior à celebração da promessa de compra e venda, não tem eficácia perante os adquirentes do imóvel.

O que se buscava, mesmo antes da vigência do Código Civil era atender ao princípio da FUNÇÃO SOCIAL do contrato e seus efeitos perante terceiros, conforme a excelente lição do Professor FLÁVIO TARTUCE, que há muito tempo, estuda a questão e tem contribuído de maneira ímpar com sua aplicação no novo direito civil brasileiro (A função social dos contratos do Código de Defesa do Consumidor ao novo Código Civil, Editora Método, 2005).

Com o advento do Código Civil de 2002, a hipoteca sofreu mais um abalo com relação à aclamada indivisibilidade. Isso porque, o artigo 1488 proclama que:

“Art. 1.488. Se o imóvel, dado em garantia hipotecária, vier a ser loteado, ou se nele se constituir condomínio edilício, poderá o ônus ser dividido, gravando cada lote ou unidade autônoma, se o requererem ao juiz o credor, o devedor ou os donos, obedecida a proporção entre o valor de cada um deles e o crédito”.

A lei permitiu, excepcionalmente, a possibilidade de divisão da hipoteca se esta recair sobre unidades autônomas ou lotes. Por que abriu a lei tamanha exceção? Em razão da função social do contrato. Nesse sentido, de maneira clara e indiscutível, entendeu o Superior Tribunal de Justiça no julgamento do REsp. 691738/SC, Rel. Ministra NANCY ANDRIGHI, TERCEIRA TURMA, julgado em 12.05.2005, DJ 26.09.2005 p. 372:

“O art. 1.488 do CC/02 consubstancia um dos exemplos de materialização do princípio da função social dos contratos , que foi introduzido pelo novo código. Com efeito, a idéia que está por traz dessa disposição é a de proteger terceiros que, de boa fé, adquirem imóveis cuja construção – ou loteamento – fora anteriormente financiada por instituição financeira mediante garantia hipotecária. Inúmeros são os casos em que esses terceiros, apesar de terem, rigorosamente, pago todas as prestações para a aquisição de imóvel – pagamentos esses, muitas vezes, feitos às custas de enorme esforço financeiro – são surpreendidos pela impossibilidade de transmissão da propriedade do bem em função da inadimplência da construtora perante o agente financeiro”.

Assim, cabia uma última pergunta de direito intertemporal. O fato de a hipoteca ter sido celebrada antes da vigência do Código Civil de 2002, época em que tal previsão de divisibilidade inexistia, permite a aplicação do dispositivo em questão? Estar-se-ia ferindo a noção de ato jurídico perfeito?

A resposta é não, pois determina o artigo 2035 do Código Civil que, no tocante aos efeitos dos negócios jurídicos, aplica-se o novo diploma, ainda que estes tenham sido celebrados na vigência do Código Civil de 1916. Novamente, o acórdão que se comenta é exemplar:

“Essa norma claramente não visa à desconstituição completa de um negócio jurídico, sob o argumento de lesão à ordem pública. Assim, a questão não se situa no âmbito do parágrafo único do art. 2.035 do CC/02. Essa norma instituiu um direito potestativo à divisão do gravame hipotecário, direito esse que pode ser exercido pela parte interessada e a que não corresponde prestação alguma da outra parte. Vale dizer: uma vez preenchidos os requisitos da lei (imóvel que vier a ser loteado, ou em que se constituir condomínio edilício), o direito pode ser exercício pelo interessado, e à contra-parte competirá meramente se sujeitar a esse exercício.

Disso decorre que a Lei não interfere no contrato de hipoteca. Este continua válido, entre as partes signatárias. O que é criado pela Lei é uma válvula de escape para os adquirentes das unidades do loteamento ou do condomínio edilício, em face de quem os efeitos da hipoteca não se produzem . Trata-se, portanto, de um obstáculo exterior, imposto por lei, ao contrato. Aplicam-se, por exceção, à hipoteca (que um direito real) os princípios que regem os contratos consensuais, que produzem efeitos exclusivamente entre as partes signatárias”.

Não se discute a validade da hipoteca, mas alteram-se seus efeitos. O Código Civil garante ao credor o direito de oposição se provado que o desmembramento importa em diminuição de garantia (CC, art. 1488, § 1º). Assim, o fracionamento não significará prejuízos ao credor, mas um enorme benefício ao devedor.

A norma deve ser aplicada de imediato, ainda que os contratos tenham sido celebrados sob a vigência do Código Civil de 1916. O acórdão reflete mais um acerto do Poder Judiciário na interpretação e aplicação do Código Civil de 2002 em perfeita harmonia aos paradigmas constitucionais.

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