O afeto em xeque e a jurisprudência do Superior Tribunal de Justiça

Já há muito se discute o valor jurídico do afeto. As teses negacionistas pelas quais o afeto não produz efeitos na ordem jurídica e é um mero “sentimento” estranho ao Direito de Família encontram-se superadas, razão pela qual não se perde tempo para rebatê-las.

Vale lembrar que a tese negacionista não encontra guarida de relevo também em Portugal. Em 23 de janeiro de 2012 o jornal Correio da Manhã noticiava: “Obrigado a ser pai de filha alheia”. A reportagem cuidava de uma ação julgada pelo Tribunal da Relação de Coimbra em que o pai de uma menina propunha uma ação negatória de paternidade alegando que não era seu pai biológico por ser infértil. A notícia dizia, ainda, que o autor da demanda sabia que a filha não era sua desde o nascimento da criança, conhecendo, inclusive, o fato de a mãe da menina, sua mulher, ter mantido relações extraconjugais. Seguem algumas linhas da publicação:

“António (nome fictício) tem uma ‘filha’ de 17 anos com o seu apelido, mas sabe que não é o pai, por ser infértil e nem sequer ter tido relações sexuais com a mãe desta. Para repor a ‘verdade biológica’ e retirar o seu nome da certidão de nascimento, recorreu ao tribunal, mas o seu pedido não foi aceite, por ter sido feito fora de prazo. Ainda tentou provar a inconstitucionalidade dessa norma, mas de nada lhe valeu.

O queixoso, que reside no concelho de Condeixa-a-Nova, era casado, mas a mulher (e mãe da rapariga) ‘recusava-se a ter relações sexuais” com ele, pois ‘mantinha um relacionamento amoroso e sexual’ com outro homem. António sempre soube que a menor não era sua filha. Acabaria por se divorciar da mulher, mas nessa altura o seu nome já figurava na certidão de nascimento como sendo o pai. Foi deixando passar o tempo, e quando apresentou, junto do Tribunal de Condeixa, uma acção de impugnação da paternidade, a menor já tinha 13 anos, quando a lei prevê um prazo de três anos para o fazer,’ contados desde a data em que teve conhecimento”.

Nota-se que a construção socioafetiva é pano de fundo que dá subsídio aos prazos para impugnação de paternidade. No Brasil, por opção equivocada do legislador, o prazo para a impugnação da paternidade não se sujeita à decadência (artigo 1.601 do Código Civil).

De início, cabe a delimitação do conceito de afeto, para evitar qualquer confusão com conceitos semelhantes, como carinho, amor, respeito e consideração. Já tive oportunidade de dizer que confundir amor e afeto é algo danoso ao sistema jurídico. Se fosse amor, sua aferição necessitaria de longo e inócuo trabalho de investigação da alma humana: “você ama seu filho?” ou “qual a medida de seu amor?”.Por fim haveria um risco: findo o amor, logo, equivocadamente, findo o afeto, os vínculos jurídicos dele decorrentes podem ser desfeitos.

Nas palavras de Giselle Câmara Groeninga, “o afeto é, no Direito, em ramos da filosofia e no senso comum, identificado com o amor. Em nossa visão positivista era inclusive visto como dissociado do pensamento. Mas, ele é muito mais do que isto. Sem dúvida, uma qualidade que nos caracteriza é a ampla gama de sentimentos com que somos dotados e que nos vinculam – uns aos outros, de forma original face a outras espécies. Com base nos afetos, que se transformam em sentimentos, é que criamos as relações intersubjetivas – compostas de razão e emoção – do que nos move. À diferença dos outros animais, somos constituídos, além dos instintos, de sua tradução mental em impulsos de vida e de morte. Estes ganham a qualidade mental de afetos – energia mental com a qualidade de ligação, de vinculação = libido, Eros, ou de desligamento, de não existência = morte, Thanatos. São estes impulsos que nos afetam, desde dentro, e que se transformam em sentimentos – que ganham um sentido, uma direção na relação com as outras pessoas, com nuances que variam do amor ao ódio, em combinações variadas. É por meio dos afetos que valorizamos e julgamos a experiência em prazerosa, desprazerosa, boa ou má. Mas vamos além disto, e valoramos nossas experiências também de acordo com o pensamento, com a experiência e com valores construídos nas relações e apreendidos do meio social. São os afetos que nos vinculam das mais diversas formas às pessoas. E é certo que também somos afetados pelos estímulos externos que são traduzidos, interpretados mentalmente segundo as experiências passadas e a valoração que lhes foram atribuídas. Somos seres axiológicos por excelência, e parte desta qualidade que nos é inerente vem justamente dos afetos”[1].

 

Amor e ódio, o desejo de vida e de morte são expressões do afeto.

É o afeto que se manifesta na relação com outro que nos interessa. Afeto em potência, sem que se transforme em relação efetivamente não interessa ao Direito de Família. A valorização do afeto como motivo para a formação de vínculos familiares que vão além da adoção, remonta ao brilhante trabalho de João Baptista Vilella, jurista de primeira grandeza, escrito no início da década de 1980, tratando da desbiologização da paternidade. Na essência, o trabalho procura dizer que o vínculo familiar seria mais um vínculo de afeto do que um vínculo biológico. Assim surgiria uma nova forma de parentesco civil, a parentalidade socioafetiva.

O afeto tem repercussão nos tribunais em dois campos: responsabilidade civil por abandono afetivo e a criação de vínculos familiares.

Em 2 de maio de 2012, o mesmo STJ que, em decisão lamentável, no ano de 2005 afastou a indenização por abandono afetivo ao confundir amor com afeto[2], com nova composição, atento a um direito de família mais humano e solidário, julgou outro caso de abandono com decisão totalmente oposta. A ministra Nancy Andrighi deixou claro que “na hipótese, não se discute o amar – que é uma faculdade – mas sim a imposição biológica e constitucional de cuidar, que é dever jurídico, corolário da liberdade das pessoas de gerar ou adotar filhos”.[3]

Confundir cuidado com amor foi erro lamentável que abonou ao abandono e serviu de estímulos aos péssimos genitores. Esclarecer que amor e afeto não se confundem revelou, de maneira pedagógica, a sensibilidade da ministra Nancy Andrighi.

O julgado em que o STJ pune o abandono e põe fim à irresponsabilidade parental ressalta que “os sentimentos de mágoa e tristeza causados pela negligência paterna e o tratamento como filha de segunda classe, que a recorrida levará ad perpetuam, é perfeitamente apreensível e exsurgem das omissões do pai (recorrente) no exercício de seu dever de cuidado em relação à filha e também de suas ações que privilegiaram parte de sua prole em detrimento dela, caracterizando o dano in re ipsa e traduzindo-se, assim, em causa eficiente à compensação”.

Em termos de criação de vínculos jurídicos a questão se complica enormemente. É verdade que o artigo 1.593 do Código Civil admite que o parentesco natural decorre da consanguinidade e que o parentesco civil de outra origem. É a porta de entrada da lei para se admitir, além do parentesco civil por adoção, o por socioafetividade.

Nesse sentido, o STJ já há muito entende que o afeto tem valor jurídico. Em 2011, aquele tribunal afirmava de maneira indiscutível:

“A filiação socioafetiva encontra amparo na cláusula geral de tutela da personalidade humana, que salvaguarda a filiação como elemento fundamental na formação da identidade e definição da personalidade da criança”(REsp 450.566/RS, Rel. Ministra NANCY ANDRIGHI,TERCEIRA TURMA, julgado em 03/05/2011, DJe 11/05/2011)

Ora, se a socioafetividade efetivamente tem por fundamento a tutela de personalidade, dúvida não há do patamar em que se encontra. É valor de extrema importância para a formação da pessoa humana.

a)Afeto prestigiado

É por isso que na esteira desse entendimento, outro se consolidou. O homem que sabe não ser pai de certa pessoa e a reconhece como filho, ou seja, opta por exercer a função paterna, mesmo sem vínculos biológicos, não pode depois desfazer tal vínculo voluntariamente construído. Isso se verifica, nos casos prático, quando há uma briga entre marido e mulher ou companheiro e companheira e o homem decide negar a paternidade apesar de ter se comportado como pai por muito tempo.

A síntese da compreensão do STJ sobre a questão e o prestígio que tem o afeto vem das palavras da Ministra Nancy Andrighi[4]:

“Não há como desfazer um ato realizado com perfeita demonstração de vontade, como ocorreu no caso dos autos, em que o próprio recorrido [o pai não-biológico] manifestou que sabia não haver vínculo biológico com a criança, e, mesmo assim, reconheceu-a como sua filha. Se o fez com o intuito de agradar sua então mulher, tal motivação não caracteriza coação, como alegou de início. O recorrido jamais poderia valer-se de uma falsidade por ele mesmo perpetrada, o que, a seu ver, corresponderia a utilizar-se de sua própria torpeza para benefício próprio, o que realmente seria muito conveniente, em prejuízo direto à criança envolvida. É preciso ter em mente a salvaguarda dos interesses dos pequenos e que a ambivalência nas recusas de paternidade são particularmente mutilantes para a identidade das crianças. Isso impõe ao julgador desvelo no exame das peculiaridades de cada processo, no sentido de tornar, o quanto possível, perenes os vínculos e alicerces na vida em desenvolvimento”.

Em nova oportunidade, quando terceiro (nem o pai, nem o filho) pretende ver o vínculo socioafetivo desconstituído para poder receber a herança ou quota maior (ação com objetivo puramente patrimonial), o mesmo STJ valoriza o afeto:

“O pedido deduzido por irmão, que visa alterar o registro  de nascimento de sua irmã, atualmente com mais de 60 anos de idade, para dele excluir o pai comum, deve ser apreciado à luz da verdade socioafetiva, mormente quando decorridos mais de 40 anos do ato inquinado de falso, que foi praticado pelo pai registral sem a concorrência da filha.  II. Mesmo na ausência de ascendência genética, o registro da recorrida como filha, realizado de forma consciente, consolidou a filiação socioafetiva, devendo essa relação de fato ser reconhecida e amparada juridicamente. Isso porque a parentalidade que nasce de uma decisão espontânea, deve ter guarida no Direito de Família. III. O exercício de direito potestativo daquele que estabelece uma filiação socioafetiva, pela sua própria natureza, não pode ser questionado por seu filho biológico, mesmo na hipótese de indevida declaração no assento de nascimento da recorrida. IV.A falta de interesse de agir que determina a carência de ação, é extraída, tão só, das afirmações daquele que ajuíza a demanda – in status assertionis –, em exercício de abstração que não engloba as provas produzidas no processo, porquanto a incursão em seara probatória determinará a resolução de mérito, nos precisos termos do artigo 269, I, do Código de Processo Civil.”[5]

Tais pleitos, nos casos concretos, são manejados por irmãos que, apesar de longa convivência e relação de afeto, pretendem receber maior quinhão sucessório por meio da exclusão do filho socioafetivo, ou seja, como se houvesse prevalência da consanguinidade.

A primeira parte dessa reflexão indica que sim, o afeto evidentemente é um valor jurídico de acordo com as decisões do STJ e tem prestígio como fundamento das decisões.

b)Afeto desprestigiado

Contudo, há ainda uma reflexão que se faz necessária. Se o pai registral da criança descobre que não o é em termos biológicos, que houve erro ou dolo quando do registro, pode ele impugnar a paternidade do filho? A resposta mudaria se o tempo já houvesse consilidado vínculos afetivos?

A decisão já antiga do STJ indicava o seguinte:

DIREITO CIVIL. FAMÍLIA. RECURSO ESPECIAL. AÇÃO NEGATÓRIA DE PATERNIDADE. EXAME DE DNA. – Tem-se como perfeitamente demonstrado o vício de consentimento a que foi levado a incorrer o suposto pai, quando induzido a erro ao proceder ao registro da criança, acreditando se tratar de filho biológico. – A realização do exame pelo método DNA a comprovar cientificamente a inexistência do vínculo genético, confere ao marido a possibilidade de obter, por meio de ação negatória de paternidade, a anulação do registro ocorrido com vício de consentimento. – A regra expressa no art. 1.601 do CC/02, estabelece a imprescritibilidade da ação do marido de contestar a paternidade dos filhos nascidos de sua mulher, para afastar a presunção da paternidade. –  Não pode prevalecer a verdade fictícia quando maculada pela verdade real e incontestável, calcada em prova de robusta certeza, como o é o exame genético pelo método DNA. – E mesmo considerando a prevalência dos interesses da criança que deve nortear a condução do processo em que se discute de um lado o direito do pai de negar a paternidade em razão do estabelecimento da verdade biológica e, de outro, o direito da criança de ter preservado seu estado de filiação, verifica-se que não há prejuízo para esta, porquanto à menor socorre o direito de perseguir a verdade real em ação investigatória de paternidade, para valer-se, aí sim, do direito indisponível de reconhecimento do estado de filiação e das consequências, inclusive materiais, daí advindas. Recurso especial conhecido e provido.[6]

 

A decisão de 2007 gera o seguinte efeito: o vício de consentimento põe fim à paternidade construída por dois (pai e filho) em razão da vontade de um (pai) muitas vezes porque foi enganado por um terceiro (mãe da criança).

A situação do filho é simples assim. Passa a ser órfão de pai vivo. A decisão pode apagar o vínculo jurídico, mas jamais o afetivo construído. O filho têm um pai em termos afetivos, mas fica órfão em termos jurídicos.

Em termos de dialética, costuma-se afirmar que não se pode forçar alguém que não quer a ser pai. Então, um forte argumento que se utiliza é o seguinte: alguém pode ser obrigado a ser pai contra sua vontade? A resposta é pode.

Quando em razão de sexo eventual um homem engravida uma mulher, será ele pai da criança querendo ou não, e dessa paternidade decorrerão diversas responsabilidades. Quando um casal casado ou em união estável mantém relações sexuais e nasce um filho, o Direito não pergunta se ele era querido, desejado ou não. Ele é pai da criança.

Quando um pai tem um desencanto com seu filho, quer seja em decorrência de atos por ele praticados ou mesmo por não seguir seus modelos, o Direito admite que rompa os vínculos jurídicos? Não, não admite.

É verdade que o sangue latino tão bem retratado por Machado de Assis em “Dom Casmurro” evidencia que o homem não consegue viver com a dúvida da traição. É algo demasiadamente desconcertante para alguns. Bentinho via no filho as marcas indeléveis da traição de Capitu, com “olhos de ressaca, oblíqua e dissimulada”.

É de se lembrar que se a decisão em que o homem enganado pode negar a paternidade do filho efetivamente for uma constante, no caso relatado pela imprensa (médico Roger Abdelmassih) em que as mulheres foram enganadas, assim como seus maridos pelo médico, poderiam ambos negar a paternidade da criança nascida pela técnica heteróloga quando o casal pensava ser homóloga? A resposta pela orientação do STJ seria positiva, pois ambos foram enganados por um terceiro (médico) e a mulher concebeu um filho com óvulo que não é dela (logo DNA é de outra) e com um espermatozóide de um terceiro (logo pelo exame de DNA o pai biológico é outro).

Bem, essa orientação foi recentemente repetida pelo STJ (em 19 de fevereiro de 2015):[7]

1. Afigura-se absolutamente estéril a discussão afeta à observância ou não dos princípios da eventualidade e da adstrição, notadamente porque a tese de paternidade socioafetiva, não trazida inicialmente na contestação, mas somente após o exame de DNA, conjugada com a também inédita alegação de que o demandante detinha conhecimento de que não era o pai biológico quando do registro, restou, de certo modo, convalidada no feito. Isso porque o autor da ação pleiteou a emenda da inicial, para o fim de explicitar o pedido de retificação do registro de nascimento do menor, proceder aquiescido pela parte requerida, que, posteriormente, ratificou os termos de sua defesa como um todo desenvolvida no processo.

2.  A controvérsia instaurada no presente recurso especial centra- se em saber se a paternidade registral, em desacordo com a verdade biológica, efetuada e declarada por indivíduo que, na fluência da união estável estabelecida com a genitora da criança, acredita, verdadeiramente, ser o pai biológico desta (incidindo, portanto, em erro), daí estabelecendo vínculo de afetividade durante os primeiros cinco/seis anos de vida do infante, pode ou não ser desconstituída.

2.1. Ao declarante, por ocasião do registro, não se impõe a prova de que é o genitor da criança a ser registrada. O assento de nascimento traz, em si, esta presunção, que somente pode vir a ser ilidida pelo declarante caso este demonstre ter incorrido, seriamente, em vício de consentimento, circunstância, como assinalado, verificada no caso dos autos. Constata-se, por conseguinte, que a simples ausência de convergência entre a paternidade declarada no assento de nascimento e a paternidade biológica, por si, não autoriza a invalidação do registro. Ao marido/companheiro incumbe alegar e comprovar a ocorrência de erro ou falsidade, nos termos dos arts. 1.601 c.c 1.604 do Código Civil. Diversa, entretanto, é a hipótese em que o indivíduo, ciente de que não é o genitor da criança, voluntária e expressamente declara o ser perante o Oficial de Registro das Pessoas Naturais (“adoção à brasileira”), estabelecendo com esta, a partir daí, vínculo da afetividade paterno-filial. A consolidação de tal situação (em que pese antijurídica e, inclusive, tipificada no art. 242, CP), em atenção ao melhor e prioritário interesse da criança, não pode ser modificada pelo pai registral e socioafetivo, afigurando-se irrelevante, nesse caso, a verdade biológica.

Jurisprudência consolidada do STJ.

2.2. A filiação socioativa, da qual a denominada adoção à brasileira consubstancia espécie, detém integral respaldo do ordenamento jurídico nacional, a considerar a incumbência constitucional atribuída ao Estado de proteger toda e qualquer forma de entidade familiar, independentemente de sua origem (art. 227, CF).

2.3. O estabelecimento da filiação socioafetiva perpassa, necessariamente, pela vontade e, mesmo, pela voluntariedade do apontado pai, ao despender afeto, de ser reconhecido como tal. É dizer: as manifestações de afeto e carinho por parte de pessoa próxima à criança somente terão o condão de convolarem-se numa relação de filiação, se, além da caracterização do estado de posse de filho, houver, por parte daquele que despende o afeto, a clara e inequívoca intenção de ser concebido juridicamente como pai ou mãe daquela criança. Portanto, a higidez da vontade e da voluntariedade de ser reconhecido juridicamente como pai, daquele que despende afeto e carinho a outrem, consubstancia pressuposto à configuração de toda e qualquer filiação socioafetiva. Não se concebe, pois, a conformação desta espécie de filiação, quando o apontado pai incorre em qualquer dos vícios de consentimento.

Na hipótese dos autos, a incontroversa relação de afeto estabelecida entre pai e filho registrais (durante os primeiros cinco/seis anos de vida do infante), calcada no vício de consentimento originário, afigurou-se completamente rompida diante da ciência da verdade dos fatos pelo pai registral, há mais de oito anos. E, também em virtude da realidade dos fatos, que passaram a ser de conhecimento do pai registral, o restabelecimento do aludido vínculo, desde então, nos termos deduzidos, mostrou-se absolutamente impossível.

2.4. Sem proceder a qualquer consideração de ordem moral, não se pode obrigar o pai registral, induzido a erro substancial, a manter uma relação de afeto, igualmente calcada no vício de consentimento originário, impondo-lhe os deveres daí advindos, sem que, voluntária e conscientemente, o queira. Como assinalado, a filiação sociafetiva pressupõe a vontade e a voluntariedade do apontado pai de ser assim reconhecido juridicamente, circunstância, inequivocamente, ausente na hipótese dos autos.

Registre-se, porque relevante: Encontrar-se-ia, inegavelmente, consolidada a filiação socioafetiva, se o demandante, mesmo após ter obtido ciência da verdade dos fatos, ou seja, de que não é pai biológico do requerido, mantivesse com este, voluntariamente, o vínculo de afetividade, sem o vício que o inquinava.

2.5. Cabe ao marido (ou ao companheiro), e somente a ele, fundado em erro, contestar a paternidade de criança supostamente oriunda da relação estabelecida com a genitora desta, de modo a romper a relação paterno-filial então conformada, deixando-se assente, contudo, a possibilidade de o vínculo de afetividade vir a se sobrepor ao vício, caso, após o pleno conhecimento da verdade dos fatos, seja esta a vontade do consorte/companheiro (hipótese, é certo, que não comportaria posterior alteração).

3. Recurso Especial provido, para julgar procedente a ação negatória de paternidade.”

A questão que surge é a seguinte: a decisão é efetivamente casuística a ponto de impossibilitar a verificação de uma linha de orientação daquele Tribunal ou revela um pensamento consubstanciado na fórmula “homem enganado pode optar por deixar de ser pai”?

Tudo indica que realmente a decisão reflete um pensamento já consolidado pelo STJ. O homem enganado pode sempre optar por não ser pai em termos jurídicos apesar de clara construção de paternidade afetiva.

c) Afeto perplexo

A última linha de orientações do STJ sobre o afeto evidencia uma perplexidade. Trata-se da hipótese de o filho decidir se quer ou não manter o vínculo de afeto. Surge, então, um terceiro elemento: a vontade.

A decisão do STJ, de dezembro de 2012, revela um entendimento que gera perplexidade:

É possível o reconhecimento da paternidade biológica e a anulação do registro de nascimento na hipótese em que pleiteados pelo filho adotado conforme prática conhecida como “adoção à brasileira”. A paternidade biológica traz em si responsabilidades que lhe são intrínsecas e que, somente em situações excepcionais, previstas em lei, podem ser afastadas. O direito da pessoa ao reconhecimento de sua ancestralidade e origem genética insere-se nos atributos da própria personalidade. A prática conhecida como “adoção à brasileira”, ao contrário da adoção legal, não tem a aptidão de romper os vínculos civis entre o filho e os pais biológicos, que devem ser restabelecidos sempre que o filho manifestar o seu desejo de desfazer o liame jurídico advindo do registro ilegalmente levado a efeito, restaurando-se, por conseguinte, todos os consectários legais da paternidade biológica, como os registrais, os patrimoniais e os hereditários. Dessa forma, a filiação socioafetiva desenvolvida com os pais registrais não afasta os direitos do filho resultantes da filiação biológica, não podendo, nesse sentido, haver equiparação entre a “adoção à brasileira” e a adoção regular. Ademais, embora a “adoção à brasileira”, muitas vezes, não denote torpeza de quem a pratica, pode ela ser instrumental de diversos ilícitos, como os relacionados ao tráfico internacional de crianças, além de poder não refletir o melhor interesse do menor.[8]

Posteriormente, em 2013, a decisão em caso semelhante se repete:

“Se é o próprio filho quem busca o reconhecimento do vínculo biológico com outrem, porque durante toda a sua vida foi induzido a acreditar em uma verdade que lhe foi imposta por aqueles que o registraram, não é razoável que se lhe imponha a prevalência da paternidade socioafetiva, a fim de impedir sua pretensão. “7. O reconhecimento do estado de filiação constitui direito personalíssimo, indisponível e imprescritível, que pode ser exercitado, portanto, sem qualquer restrição, em face dos pais ou seus herdeiros. 8. Ainda que haja a consequência patrimonial advinda do reconhecimento do vínculo jurídico de parentesco, ela não pode ser invocada como argumento para negar o direito do recorrido à sua ancestralidade. Afinal, todo o embasamento relativo à possibilidade de investigação da paternidade, na hipótese, está no valor supremo da dignidade da pessoa humana e no direito do recorrido à sua identidade genética”[9]

Note-se que identidade genética e paternidade são coisas distintas há séculos. Pai adotivo é pai e não ascendente genético. Ascendente genético que doa material para o banco de esperma não é pai, mas é ascendente genético.

Verdade genética é direito de personalidade, paternidade é relação de parentesco. Permitir que o filho opte em buscar a verdade biológica após ter tido um pai socioafetivo é colocar completamente o afeto em cheque[10] negando-lhe os efeitos. É desfazer por vontade de um o que foi criado por vontade de dois. A questão que se colocará é: mas se o filho foi enganado como se pode retirar seu direito a buscar a paternidade biológica? A resposta é não se pode.

Então como resolver a situação? Se por sua exclusiva vontade, quiser o filho  também a verdade biológica em sua certidão de nascimento, que não se desfaça a socioafetiva. Sim, aqui, admito eu a multiparentalidade exclusivamente por vontade e interesse do filho.

Concluo as presentes linhas afirmando que essa ação só poderá ser movida pelo filho se relativamente capaz, jamais representado por sua mãe, e não desfará os vínculos jurídicos decorrentes da afetividade.

Se assim não for, mantidas as decisões do STJ pela qual o pai enganado pode negar a paternidade de seu filho e o filho pode, conforme sua vontade, buscar a verdade biológica destruindo a afetiva, o afeto estará mais que em cheque e sim totalmente renegado.


[1]Descumprimento do dever de convivência: danos morais por abandono afetivo. A interdisciplina sintoniza o direito de família com o direito à família. In A outra face do Poder Judiciário – Decisões inovadoras e mudanças de paradigmas. Coord. Giselda Maria Fernandes Novaes Hironaka. Belo Horizonte: Del Rey/São Paulo: Escola Paulista de Direito – EPD. 2005

[2] Vide REsp 757.411/MG.

[3]Informativo STJ 496, REsp 1.1.59.242/SP.O TJ/SP já havia admitido esta reparação no ano de 2008.  “Responsabilidade civil. Dano moral. Autor abandonado pelo pai desde a gravidez da sua genitora e reconhecido como filho somente após propositura de ação judicial. Discriminação em face dos irmãos. Abandono moral e material caracterizados. Abalo psíquico. Indenização devida. Sentença reformada. Recurso provido para este fim. Apelação com revisão 5119034700”, TJ-SP, Rel. Des. CAETANO LAGRASTA, j. 12.8.2008)

[4]REsp 1.003.628/DF

[5]REsp 1.259.460-SP, DJe 29/6/12.

[6] REsp nº 878.954/RS. Rel. Min.  Nancy Andrighi. DJ: 07.05.2007. p. 339.

[7] REsp 1330404/RS, Rel. Ministro MARCO AURÉLIO BELLIZZE, TERCEIRA TURMA, julgado em 05/02/2015, DJe 19/02/2015.

[8] REsp nº 833.712/RS. Rel. Min. Nancy Andrighi. DJ: 04.06.2007. REsp nº 1.167.993/RS. Rel. Min. Luis Felipe Salomão. DJ: 18.12.2012.

[9] REsp 1401719/MG, Rel. Ministra NANCY ANDRIGHI, TERCEIRA TURMA, julgado em 08/10/2013, DJe 15/10/2013.

[10] Não cabe essa conclusão para a hipótese de crime como sequestro ou rapto de criança. O crime dessa gravidade não permite ao criminoso se valer do vínculo criado, em razão de sua torpeza.

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