Lei, legislador e realidade – O Direito se vinga da Lei

É tarefa do legislador, eleito por todos nós, fazer a lei. E ele faz. Nem sempre de maneira cuidadosa, nem sempre de maneira dedicada, mas ele faz.

Aprendemos nos bancos da Faculdade que o Direito não se confunde com a Lei. A lei é fonte do direito, mas não o próprio direito.

Essas brevíssimas notas são apenas ponto de partida da reflexão que pretendo travar com vocês, amigos leitores, no mês de dezembro deste ano de 2009.

O tema que abordaremos é, novamente, a Sucessão do Companheiro.

No ano de 2005, a partir de maio, publicamos nesta Carta Forense, 5 colunas referentes ao Direito das Sucessões, e ao polêmico tema da Sucessão do Companheiro. Peço vênia aos leitores para transcrever um pequeno trecho de minhas as reflexões:

“A concorrência com ascendentes e colaterais do companheiro

Se o falecido não deixou descendentes, nem ascendentes, mas deixou parentes colaterais, serão herdeiros: o irmão do morto (parente em segundo grau), o sobrinho e o tio do morto (colateral em terceiro grau), bem como o tio-avô, o sobrinho-neto e os primo-irmão (parentes em quarto grau). Exemplificamos. Se o companheiro ao falecer tinha dois bens: uma casa de praia que herdou de seu pai (bem particular) e um apartamento que comprou após o início da união estável (bem comum) e deixou seu tio-avô (irmão de seu avô) e sua companheira, os bens serão partilhados assim:

– Casa de praia (bem particular recebido por herança): 100% para o tio-avô (não há meação, nem concorrência)

– Apartamento (bem comum comprado após o início da união estável): 50% para companheira a título de meação e 50% a ser dividido em três partes iguais (1/3 para a companheira e 2/3 para o tio-avô).

Imaginar que um sobrinho do morto terá mais direitos que a companheira de uma vida causa espécie. A norma é injusta, sem sombra de dúvidas, razão pela qual merecem aplausos os projetos de reforma.”

Passados quase cinco anos, as reflexões sobre o tema voltam ao debate em razão das recentes decisões do Poder Judiciário. Se dizia em 2005 que a lei era injusta, hoje completo: o legislador de 2002, de maneira incompreensível e injustificada, tratou com muita má vontade da união estável.

Enquanto a lei 8971/94 garantia que, na existência de descendentes e ascendentes, o companheiro herdaria a totalidade dos bens do falecido (art. 2º, III), ou seja, excluindo o colateral da sucessão, o Código Civil retrocede na proteção aos companheiros fazendo-os concorrer com os colaterais (art. 1790, III).

Injustificado retrocesso só pode ser tido como inconstitucional. Ademais, em se tratando de casamento, a existência do cônjuge exclui da sucessão o colateral desde a edição da Lei Feliciano Pena de 1907.

Se a lei 8971/94 equiparou a situação do companheiro a do cônjuge, nenhuma razão haveria para o Código Civil de 2002 retroceder em termos de direitos, negando o caráter familiar da união estável, em clara valorização dos vínculos de sangue (parentesco colateral) em detrimento dos vínculos de afeto (decorrentes da convivência pública, contínua e duradoura com o intuito de constituir família que caracteriza a união estável).

É nesse ponto que a verdadeira soberba do legislador ordinário revela que o Direito é algo que supera a Lei. Confirmando essa opinião, em brilhante decisão fundamentada e didática, o TJ/SP entendeu o seguinte:

“Não se justificam as diferenças, contudo, nos pontos em que se identificam a união estável e o casamento. Tal ponto, repita-se, é o afeto entre os seus membros e a função de promoção e desenvolvimento da personalidade daqueles que a compõem. Em termos diversos, no que se refere à garantia da dignidade do viúvo, seja ele casado ou companheiro, inexiste razão lógica para o discrímen, de modo que se ifipõe, aqui, tratamento paritário entre as duas situações. ” Diz que “e;a equiparação dos direitos dá-se em virtude do princípio da igualdade substancial, cânone do direito constitucional, cuja aplicação garante a atuação do princípio fundador do ordenamento jurídico brasileiro: a dignidade da pessoa humana”e; (Ana Luiza Maia Nevares A Tutela Sucessória do Cônjuge e do Companheiro na Legalidade Constitucional, p. 238).

Uma interpretação literal e exegética do artigo 1.790 – tão ao gosto do pensamento liberal que orientou o Código de 1.916 – levaria à fácil conclusão de que o regime radicalmente distinto da sucessão do companheiro nada mais é do que a melhor expressão da norma constitucional, que não equiparou o casamento à união estável, mas, ao invés, conferiu primazia ao primeiro. Essa conclusão, a meu ver, não pode prevalecer, sob a ótica civil-constitucional. Obvio que o casamento não se equipara à união estável, podendo gerar – como gera – direitos e deveres distintos a cônjuges e companheiros. O que se discute é a possibilidade da legislação infraconstitucional alijar, de modo tão grave, alguns direitos fundamentais anteriormente assegurados a partícipes de entidades familiares constitucionalmente reconhecidas, em especial o direito à herança. (AI 567.929.4/0-00, j. 11.9.08 e AI 654.999-4/7-00, j. 27.08.09).

A conclusão do julgado não poderia ser outra: “O art.1790 do Código Civil, ao tratar de forma diferenciada a sucessão legítima do companheiro em relação ao cônjuge, incide em inconstitucionalidade, pois a Constituição não permite a diferenciação entre famílias assentadas no casamento e na união estável, nos aspectos em que são idênticas, que são os vínculos de afeto, solidariedade e respeito, vínculos norteadores da sucessão legitima.”

As decisões do TJ/SP se avolumam neste sentido:

“SUCESSÃO – Herança – Hipótese em que houve comprovação de que o companheiro falecido deixou um único bem, adquirido na constância da união estável e mediante esforço comum – Herança que deverá ser deferida, em sua totalidade, à companheira supérstite, quando concorre com colaterais – Admissibilidade – Não incidência do art. 1.790, III do CC/2002, proibindo-se assim o retrocesso que elimina direitos fundamentais consagrados, como o de equiparar a companheira e a esposa na grade de vocação hereditária (com preferência aos colaterais) – Princípio da não reversibilidade dos direitos sociais – Aplicação do art. 2o, III da Lei 8.791/94 e 226, § 3o da CF – Recurso da companheira provido e não provido o interposto pelos colaterais (Agravo de instrumento n. 499.826-4/0 e 507.284-4/6 – Americana – 4a Câmara de Direito Privado – Relator: Enio Santarelli Zuliani – 30.08.07 -V.U.)”

“AGRAVO – Arrolamentos de Bens – Morte do companheiro – Ausência de ascendente ou descendente, existência, porém, de colaterais noticiada pela própria companheira – União estável iniciada na vigência da Lei 8.971/94 e que perdurou até o falecimento do companheiro – Fato ocorrido em 2004 – Inaplicabilidade da disciplina sucessória prevista no Novo Código Civil – Atribuição à companheira sobrevivente do mesmo status hereditário que a lei atribui ao cônjuge supérstite – Totalidade da herança devida à companheira, afastando da sucessão os colaterais e o Estado – Inaplicabilidade da norma do art. 1.790, III do Código Civil em vigor – Recurso provido (Agravo de Instrumento n. 386.577-4/3 – São Paulo – 6a Câmara de Direito Privado – Relator: Magno Araújo – 02.06.05 – V.U.)”

“Arrolamento. Companheiro sobrevivente. Reconhecimento incidental da união estável, à vista das provas produzidas nos autos. Possibilidade. Exclusão do colateral. Inaplicabilidade do art. 1790, III, do CC, por afronta aos princípios da igualdade e da dignidade da pessoa humana e leitura sistematizada do próprio Código Civil. Equiparação ao cônjuge supérstite. Precedentes. Agravo improvido (Agravo de Instrumento 609.024-4/4-00 – São Paulo – Relator: Caetano Lagrasta – Órgão julgador: 8a Câmara de Direito Privado – Data do julgamento: 06/05/2009).”

No último julgado mencionado, foi com alegria que vi a menção a nossa obra: “Sobre o tema, os Professores FLÁVIO TARTUCE e JOSÉ FERNANDO SIMÃO, observam que: “e;o tratamento do cônjuge como herdeiro e do companheiro são absolutamente distintos. Essa diferença de tratamento tem por conseqüência rebaixar a família decorrente da união estável, como se ainda pudésemos falar em uma família legítima (in Direito Civil vol 6 – Direito das Sucessões, 2a ed., Método, p. 250)”e;”.

 

Acredito, então, que as previsões de 2005 se concretizaram: o companheiro recebeu o tratamento que a Constituição lhe garante. A família decorrente da união estável não é “menos” família ou “família de segunda classe”, como pretendeu o legislador de 2002. O Direito se vingou da Lei e as decisões dos Tribunais devolvem à união estável o respeito que ficou perdido no texto frio do Código Civil.

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