Afetividade no além-mar?

Depois da difícil de defesa da minha tese de livre-docência que, na Universidade de São Paulo, é o concurso de maior duração e que contém o maior número de avaliações pela banca (defesa de tese, prova escrita, prova didática, análise de memoriais), resolvi viajar para recarregar as baterias.

Qual não foi minha surpresa ao chegar em Lisboa no dia 23 de janeiro e ler em no jornal Correio da Manhã que: “OBRIGADO A SER PAI DE FILHA ALHEIA “.

Li a reportagem toda que cuidava de uma ação julgada pelo Tribunal da Relação de Coimbra em que o pai de uma menina propunha uma ação negatória de paternidade alegando que não era seu pai biológico por ser infértil.  A matéria dizia, ainda, que o autor da demanda sabia que a filha não era sua desde o nascimento da criança, conhecendo, inclusive, o fato de a mãe da menina, sua esposa, ter mantido relações extraconjugais.

Seguem algumas linhas da publicação:

“António (nome fictício) tem uma “e;filha”e; de 17 anos com o seu apelido, mas sabe que não é o pai, por ser infértil e nem sequer ter tido relações sexuais com a mãe desta. Para repor a “verdade biológica” e retirar o seu nome da certidão de nascimento, recorreu ao tribunal, mas o seu pedido não foi aceite, por ter sido feito fora de prazo. Ainda tentou provar a inconstitucionalidade dessa norma, mas de nada lhe valeu.

O queixoso, que reside no concelho de Condeixa-a-Nova, era casado, mas a mulher (e mãe da rapariga) “e;recusava-se a ter relações sexuais” com ele, pois “mantinha um relacionamento amoroso e sexual” com outro homem. António sempre soube que a menor não era sua filha. Acabaria por se divorciar da mulher, mas nessa altura o seu nome já figurava na certidão de nascimento como sendo o pai. Foi deixando passar o tempo, e quando apresentou, junto do Tribunal de Condeixa, uma acção de impugnação da paternidade, a menor já tinha 13 anos, quando a lei prevê um prazo de três anos para o fazer,”e; contados desde a data em que teve conhecimento”.

Apesar de velada, da notícia transparecia a indignação do periódico luso. Como pano de funda, ficava uma indagação? Como fazer com que um homem que não era pai biológico, fosse pai para todos os efeitos jurídicos?

Fato é que além da questão do prazo decadencial (em Portugal denominado caducidade), o Tribunal de Coimbra mencionou (segundo a reportagem), que há outros fatores a serem considerados na formação da paternidade.

Um pouco antes de viajar a Portugal, em minha aula de revisão para Concursos no Curso Damásio, mencionei uma decisão do STJ que reforça a prevalência do vínculo afetivo sobre o biológico. Confirma-se no meu twitter (@professorsimao). Basta lançar o seguinte link http://bit.ly/nu42W6

Enquanto o Código Civil de 2002 não traz prazos para a negatória de paternidade (como trazia o revogado Código) porque o artigo 1601 é claro neste sentido (Art. 1.601. Cabe ao marido o direito de contestar a paternidade dos filhos nascidos de sua mulher, sendo tal ação imprescritível), o Código Português traz o prazo decadencial 3 anos.

A grande pergunta é: sendo a ação proposta no prazo de 3 anos (em Portugal) ou a qualquer tempo (no Brasil), a paternidade deve ser desconstituída quando o DNA atestar a ausência de vínculo biológico?

A resposta é negativa em razão do afeto que gera efeitos jurídicos na constituição de vínculos. Então surge outra questão. Se o menor ou o adolescente tiver um pai biológico que desconhecia o fato de ser pai (a mãe da criança omitiu a gravidez e o nascimento) e um pai socioafetivo que, sabendo não ser pai biológico desenvolveu o vínculo (seguindo o trinômio nomentractatus e fama), terá o pai biológico direito ao reconhecimento da paternidade?

Se a resposta for positiva, desfeita será a parentalidade socioafetiva e reconhecida a biológica (DNA vence o afeto). Se a resposta for negativa, prevalece o vínculo afetivo, mas o pai biológico ficará alijado da condição de pai (Afeto vence o DNA).

Alguns se perguntam: e por que não se admitir pluriparentalidade? Maurício Bunazar, em artigo premiado apresentado no Congresso Paulista do IBDFAM (“Pelas portas de Villella – um ensaio sobre a pluriparentalidade como realidade sócio-jurídica”), responde ser possível a aceitação desta pluriparentalidade. Não estou convencido disto.

Afirmar que a pluriparentalidade atende ao melhor interesse da criança é discurso ideológico e vazio. Pode ou não atender. Mas, pior que isto, o argumento constitucional só aplica à criança e ao adolescente. Então não haveria possibilidade de pluriparentalidade para as pessoas maiores? Bem, a saída é invocar o princípio da dignidade da pessoa humana que tem servido de panacéia a todos os males.

Aliás, para os que se utilizam do discurso principiológico de maneira vazia um lembrete. O Ato Institucional n. 5, de 13 de dezembro de 1968, uma das maiores agressões já perpetradas à democracia e à liberdade individual na história recente do Brasil, em sua justificativa afirmava: “CONSIDERANDO que a Revolução brasileira de 31 de março de 1964 teve, conforme decorre dos Atos com os quais se institucionalizou, fundamentos e propósitos que visavam a dar ao País um regime que, atendendo às exigências de um sistema jurídico e político, assegurasse autêntica ordem democrática, baseada na liberdade, no respeito à dignidade da pessoa humana, no combate à subversão e às ideologias contrárias às tradições de nosso povo, na luta contra a corrupção, buscando, deste modo, “e;os meios indispensáveis à obra de reconstrução econômica, financeira, política e moral do Brasil, de maneira a poder enfrentar, de modo direito e imediato, os graves e urgentes problemas de que depende a restauração da ordem interna e do prestígio internacional da nossa pátria”e;”.

Em suma, a questão do afeto como valor jurídico ainda engatinha. Há muito a se discutir sobre o tema. Cabe um sério aprofundamento teórico com bases sólidas a fornecer balizas para os nossos julgadores. Mas enquanto isso, no além-mar o tema palpita e vira manchete de jornal.

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