A sucessão dos irmãos bilaterais e unilaterais: inconstitucionalidade?

Foi da iniciativa do amigo Flávio Tartuce a criação de um grupo virtual de civilistas da chamada geração X para debates a respeito de direito civil. A ideia é lançarmos dúvidas, questões tormentosas, e por meio de rico debate jurídico verificarmos as opiniões dos participantes do grupo.

Mario Delgado, professor de Direito das Sucessões da Faculdade de Direito da Fundação Armando Álvares Penteado, lançou a seguinte questão posta por um aluno em sala de aula: “o art. 1841, ao distinguir a cota hereditária dos irmãos germanos e unilaterais implicaria violação reflexa ao princípio constitucional da igualdade?” A frase do aluno foi a seguinte: “meu irmão por parte de pai é tão irmão quanto os outros”.

A questão que se coloca decorre da regra sucessória pela qual o irmão unilateral (só de pai ou só de mãe) herda a metade do que herda o irmão bilateral.

“Art. 1.841. Concorrendo à herança do falecido irmãos bilaterais com irmãos unilaterais, cada um destes herdará metade do que cada um daqueles herdar”.

A sucessão do colateral só ocorre, por lei, se o falecido não deixou descendentes, ascendentes, nem cônjuge sobrevivente. Imaginemos o seguinte o exemplo. João, solteiro, falece sem pais, nem filhos e deixa como herdeiros seus dois irmãos. José é filho de seu pai e de sua mãe, logo é irmão germano ou bilateral. Maria, filha do segundo casamento de seu pai, é irmã unilateral, pois sua mãe não é a mesma de João.

Pelo art. 1841, a herança seria dividida da seguinte forma: 1/3 para Maria e 2/3 para José, pois o irmão unilateral recebe a metade do que recebe o bilateral.

Note-se que o Código Civil, assim como fazia o Código Civil de 1916, atribui maior quinhão ao irmão bilateral e menor quinhão ao unilateral. O debate proposto por Mario Delgado é o seguinte: esta regra seria inconstitucional em razão da igualdade dos filhos prevista na Constituição? Haveria violação reflexa?

De início, cabe anotar quer dispõe a Constituição Federal, art. 227, parágrafo 6º, o seguinte:

§ 6º – Os filhos, havidos ou não da relação do casamento, ou por adoção, terão os mesmos direitos e qualificações, proibidas quaisquer designações discriminatórias relativas à filiação.

Assim, se João tem dois filhos, por serem filho, independentemente da origem, terão os mesmos direitos, inclusive os sucessórios. Não se pode admitir, como fazia o Código Civil de 1916, que com relação ao filho adotivo, havia redução do quinhão sucessório. Assim vejamos a seguinte disposição do revogado Código Civil:

“Art. 1.605. Para os efeitos da sucessão, aos filhos legítimos se equiparam os legitimados, os naturais reconhecidos e os adotivos.

§ 2o Ao filho adotivo, se concorrer com legítimos, supervenientes à adoção (art. 368), tocará somente metade da herança cabível a cada um destes”.

É regra como essa, atualmente considerada de todo odiosa, pois a adoção imita a vida, que se impede com a igualdade constitucional entre os filhos.

Agora, em relação ao problema colocado, teríamos inconstitucionalidade, na relação fraterna, ou seja entre irmãos, em diferenciar o irmão bilateral do unilateral?

A Constituição não cuidou do assunto e nem pretendia fazê-lo. Se o falecido não deixou filhos, a sucessão não será na classe dos descendentes (art. 1829, I) e, por óbvio, o dispositivo constitucional não terá nenhuma aplicação. A sucessão na classe do colateral não recebe tratamento constitucional (art. 1829, IV) e, portanto, a desigualdade preconizada pelo Código Civil é absolutamente possível e não é eivada de vícios.

Aliás, a regra tem aplicação histórica secular. No Direito romano Justinianeu, em 539 d.C., estabeleceu-se regra pela qual os irmãos germanos excluíam da sucessão os irmãos unilaterais (Novela LXXXIV), conforme leciona José Carlos Moreira Alves (Direito romano, p. 482).

Em igual sentido, a Novela CXVIII, que coloca os irmãos germanos em situação privilegiada: só são chamados a suceder os irmãos unilaterais, na ausência de irmãos germanos (Warnkoenig, p.221)

Assim, a questão não passa pela constitucionalidade do dispositivo que, evidentemente, é constitucional e deve ser integralmente aplicado pelos juízes.

A questão, em verdade, passa por um viés filosófico: deveria a lei ser alterada para reconhecer a igualdade dos irmãos bilaterais e unilaterais em matéria sucessória? O conceito atual de família permite concluir que a regra histórica secular perdeu sua razão de ser?

Essa questão é ainda mais tormentosa. A sucessão legítima presume a vontade do falecido que, se tivesse feito testamento teria sua vontade cumprida. Os irmãos, na qualidade de colaterais, são herdeiros facultativos, logo, sem direito à legítima. O irmão falecido, se quisesse igualar os quinhões poderia fazê-lo por meio de testamento.

Surge, então, uma outra observação: no Brasil não há o habito de testar, logo, caberia a lei presumir de maneira adequada a vontade do falecido. E agora vem o maior desafio: pode-se afirmar com segurança que efetivamente a família brasileira do Século XXI, formada por irmãos bilaterais e unilaterais, efetivamente os considera iguais em termos afetivos?

No modelo tradicional, o pai que se divorcia e se casa novamente se afastava de sua família. Logo, os filhos do primeiro casamento pouco ou nenhum contato tinha com os filhos do segundo casamento (seus irmãos unilaterais). Será que hoje o irmão unilateral recebe o mesmo carinho afeto que o unilateral para presumir um equívoco da lei? A resposta é uma só: não se sabe seguramente. Qualquer afirmação nesse sentido é puro “achismo” e padece de base efetiva.

Parece-me que a regra sucessória da desigualdade entre irmãos é tão pacificamente aceita pela sociedade brasileira que não existem projetos para a sua alteração, nem vontade política ou social para tanto. De resto, sobra a vontade da doutrina em criar problemas onde estes realmente não existem.

O STJ tem entendimento pacífico que a regra do art. 1.841 tem aplicação no direito brasileiro:

“O Código estabelece diferença na atribuição da quota hereditária, tratando-se de irmãos bilaterais ou irmãos unilaterais. Os irmãos, bilaterais filhos do mesmo pai e da mesma mãe, recebem em dobro do que couber ao filho só do pai ou só da mãe. Na divisão da herança, coloca-se peso 2 para o irmão bilateral e peso 1 para o irmão unilateral, fazendo-se a partilha. Assim, existindo dois irmãos bilaterais e dois irmãos unilaterais, a herança divide-se em seis partes, 1/6 para cada irmão unilateral e 2/6 (1/3) para cada irmão bilateral. (VENOSA, Sílvio de Salvo. Direito Civil: Direito das Sucessões, 7ª edição, São Paulo: Atlas, 2007. p. 138). No caso dos autos, considerando-se a existência de um irmão bilateral (recorrido) e três irmãs unilaterais (recorrentes), deve-se, na linha dos ensinamento acima colacionados, atribuir peso 2 ao primeiro e às últimas peso 1. Deste modo, àquele efetivamente caberia 2/5 da herança (40%) e a cada uma desta últimas 1/5 da herança (20%).” RECURSO ESPECIAL Nº 1.203.182 – MG (2010/0128448-2), RELATOR : MINISTRO PAULO DE TARSO SANSEVERINO, 30/9/2013.

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