A sucessão dos companheiros – O artigo 1790 do Código de 2002 – Parte II

A sucessão dos companheiros – O artigo 1790 do Código de 2002 – Parte II

Cabe agora explicar a hipótese de filiação híbrida (em que concorre com descendentes comuns e não comuns), bem como a hipótese em que concorre com os demais parentes do falecido (art. 1790, III) 

Na edição de maio da Carta Forense, explicamos aos leitores as regras sucessórias na hipótese de os companheiros concorrem com herdeiros comuns (art. 1790, I) e com herdeiros exclusivos (art. 1790, II) do autor da herança.

Cabe agora explicar a hipótese de filiação híbrida (em que concorre com descendentes comuns e não comuns), bem como a hipótese em que concorre com os demais parentes do falecido (art. 1790, III).

A concorrência em caso de filiação híbrida.

Uma das mais complicadas problemáticas trazidas pelo novo Código no tocante ao direito sucessório é aquela referente à filiação híbrida.

Isso porque são diversas as teorias que pretendem solucionar a questão. Se realizarmos apenas uma interpretação literal do dispositivo, chegamos à conclusão que é defendida por SILVIO DE SALVO VENOSA pela qual, na hipótese de filiação híbrida, aplicamos o inciso I do art. 1790, e a companheira terá quota igual a dos filhos. Isso porque, o artigo não afirma que o inciso I se aplica se só concorrer com filhos comuns. Não exige a lei esta exclusividade que restringiria a aplicação do inciso. Esse é também o entendimento de Francisco José Cahali e Rolf Madaleno.

Por outro lado, como a primeira teoria é menos benéfica aos filhos, parte da doutrina entende que, para a proteção dos descendentes, em caso de filiação híbrida, o companheiro só teria direito à metade do quinhão que for atribuído a cada filho (art. 1790, II). Esse é o entendimento de Euclides de Oliveira e Zeno Veloso.

Ainda, possível seria imaginarmos uma terceira teoria a da sub-heranças. Pela teoria da sub-heranças a herança se divide em dois blocos, um dos filhos comuns e outro dos não comuns e o companheiro teria uma quota igual a dos filhos comuns e metade da quota dos não comuns. Exemplificamos. Imaginemos uma herança no importe de R$ 100.000,00 e o falecido deixa 3 filhos comuns e 2 exclusivos. Cada filho teria direito a R$ 20.000,00. Assim, a herança dos filhos comuns seria de R$ 60.000,00 e seria dividida em 4 partes (três dos filhos e uma da companheira). A companheira teria R$ 15.000,00. Já a sub-herança dos filhos exclusivos seria de R$ 40.000,00 e seria dividida em 5 partes (2 para cada filho exclusivo e uma para a companheira). A companheira teria R$ 8.000,00.

Em conclusão,a divisão total da herança seria a seguinte: cada filho comum recebe R$ 15.000,00, cada filho exclusivo recebe R$ 16.000,00 e a companheira receberia R$ 23.000,00. O grande problema da teoria é que gera uma desigualdade entre os filhos ferindo os ditames constitucionais. Entendemos ser ela inaplicável e que a teoria melhor seria a da aplicação do inciso I do artigo 1790.

A concorrência com ascendentes e colaterais do companheiro

Se o companheiro falecido não deixou descendentes, serão chamados à sucessão os ascendentes do falecido em concorrência com o companheiro (art. 1790, III). Nessa hipótese, o companheiro receberá 1/3 da herança. Exemplificamos. Se o companheiro ao falecer tinha dois bens: uma casa de praia que herdou de seu pai (bem particular) e um apartamento que comprou após o início da união estável (bem comum) e deixou sua mãe viva e sua companheira, os bens serão partilhados assim:
– Casa de praia: 100% para a mãe (não há meação, nem concorrência)
– Apartamento: 50% para companheira a título de meação e 50% a ser dividido em três partes iguais (1/3 para a companheira e 2/3 para a mãe).

Da mesma forma, se o falecido não deixou ascendentes, mas deixou parentes colaterais. Serão herdeiros o irmão do morto (parente em segundo grau), o sobrinho e o tio do morto (colateral em terceiro grau), bem como o tio-avô, o sobrinho-neto e os primo-irmão (parentes em quarto grau). Exemplificamos. Se o companheiro ao falecer tinha dois bens: uma casa de praia que herdou de seu pai (bem particular) e um apartamento que comprou após o início da união estável (bem comum) e deixou seu tio-avô (irmão de seu avô) e sua companheira, os bens serão partilhados assim:
– Casa de praia: 100% para o tio-avô (não há meação, nem concorrência)
– Apartamento: 50% para companheira a título de meação e 50% a ser dividido em três partes iguais (1/3 para a companheira e 2/3 para o tio-avô).

Imaginar que um sobrinho do morto terá mais direitos que a companheira de uma vida causa espécie. A norma é injusta, sem sombra de dúvidas, razão pela qual merecem aplausos os projetos de reforma.

O companheiro e o Estado: há concorrência?

Determina o inciso IV do artigo 1790, que, não havendo parentes sucessíveis, terá o companheiro direito à totalidade da herança. Cabe uma indagação: o inciso IV manteria relação com o caput do artigo 1790 e portanto o companheiro teria direito à totalidade da herança composta apenas dos bens adquiridos a título oneroso na constância da união estável ou de todos os bens deixados pelo falecido, inclusive os particulares?

Se a resposta for que o inciso IV deve ser interpretado a luz do caput, os bens adquiridos a título oneroso seriam herdados pelo companheiro, mas pos bens particulares seriam considerados parte de herança vacante e atribuídos aos Estado (Município ou Distrito Federal). Exemplificamos. Se o companheiro ao falecer tinha dois bens: uma casa de praia que herdou de seu pai (bem particular) e um apartamento que comprou após o início da união estável (bem comum) e deixou apenas a sua companheira, e nenhum parente sucessível, seja ele descendente, ascendente ou colateral, os bens serão partilhados assim:
– Casa de praia: 100% para Município.
– Apartamento: 50% para companheira a título de meação e 50% a título de sucessão.

Se a resposta for que o inciso IV deve ser interpretado desvinculado do caput, de acordo com o sistema criado pelo Código de 2002, os bens que comporiam o acervo hereditário seriam todos aqueles do falecido, independentemente do título de aquisição.

Exemplificamos. Se o companheiro ao falecer tinha dois bens: uma casa de praia que herdou de seu pai (bem particular) e um apartamento que comprou após o início da união estável (bem comum) e deixou apenas a sua companheira, e nenhum parente sucessível, seja ele descendente, ascendente ou colateral, os bens serão herdados pelo companheiro:
– Casa de praia: 100% para o companheiro a título de sucessão.
– Apartamento: 50% para companheira a título de meação e 50% a título de sucessão.

A segunda posição é a mais acertada. Isto porque o artigo 1844 que trata da herança vacante é expresso ao afirmar que a herança só se devolve ao Município se não houver cônjuge, companheiro ou nenhum parente sucessível. Contrario sensu, se houver o companheiro, o Município está excluído da sucessão.

Diante do verdadeiro caos instituído pelo legislador do Código de 2002, conforme demonstramos em breves linhas, a necessidade de reforma do artigo 1790 se faz imperiosa. Em razão dos clamores da doutrina, há dois projetos de alteração em trâmite no Congresso Nacional. Na edição de julho da Carta Forense analisaremos o Projeto 6960/02 de autoria do deputado Ricardo Fiúza.

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